Violência contra médicos no Brasil: o que explica o aumento dessa hostilidade?

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No dia 18 de novembro de 2024, Edvandro Gil Braz, de 54 anos, saiu de casa e não voltou mais: morreu esfaqueado no local de trabalho. O assassino foi preso, e confessou ao delegado que matou a vítima com pelo menos oito facadas por causa de uma suposta negligência no atendimento à ex-companheira dele, três anos antes. Braz era clínico geral e atendia em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) na cidade de Douradina (MS), a 192 km da capital Campo Grande.

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“No Brasil, a realidade enfrentada por muitos profissionais da área da saúde é preocupante. O médico entra na unidade de saúde para salvar vidas e sai de lá com a própria vida em risco”, diz o ginecologista e obstetra Renato Polli, diretor do Simesc (Sindicato dos Médicos do Estado de Santa Catarina), o quarto estado mais violento do país, com 386 boletins de ocorrência em 2024. “A violência gera medo, estresse e desgaste. Muitos pedem afastamento do trabalho. Outros chegam a desistir da profissão”.

Nos últimos dez anos, 37.265 boletins de ocorrência foram registrados nas delegacias de Polícia Civil dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. Em 2014, o número de registros era de 2.729. Uma década depois, saltou para 4.562, o maior número do período. Segundo levantamento do CFM (Conselho Federal de Medicina), doze médicos, em média, são vítimas de violência por dia no Brasil. Isso significa que, a cada duas horas, um profissional da área enfrenta uma situação de ofensa verbal, agressão física ou ameaça de morte dentro de hospitais, clínicas e consultórios.

Mas por que tanta hostilidade? “É uma combinação de fatores: longas filas, falta de insumos, demora no atendimento...”, lista o médico Estevam Rivello, diretor do CFM. “Infelizmente, pacientes e familiares descarregam sua frustração no profissional que está ali, na linha de frente. Os médicos não são responsáveis pela gestão das unidades de saúde em que trabalham. Eles são parte da solução, não do problema”, opina.

Dos 4.562 boletins de ocorrência de 2024, 2.551 (66%) dos casos vêm do interior do país, e 1.337 (34%) das capitais. Na maioria das vezes, os crimes são cometidos por pacientes ou familiares. É o caso do filho de uma paciente que não concordou com o diagnóstico da geriatra Juliana Arlati, de 48 anos, que trabalha em São Paulo. Descontente, o acompanhante amassou a receita e a jogou no rosto dela.

“Cerca de 75% dos brasileiros dependem do SUS para cuidar da saúde. E o número de profissionais, incluindo médicos, enfermeiros e técnicos, entre outros, não é suficiente para atender, de forma ágil e confortável, toda a demanda”, observa o ginecologista e obstetra Carlos Mascarenhas, diretor da Associação Médica Brasileira. “Os cidadãos não são as únicas vítimas da falta de estrutura do Sistema Único de Saúde. Os médicos também são”.

Em sete estados, o total de mulheres agredidas superou o dos homens. O Rio de Janeiro é um deles. Não por acaso, o CREMERJ elaborou uma cartilha sobre a violência contra a mulher médica. Os outros são: Alagoas, Bahia, Pernambuco, Piauí, Roraima e Tocantins.

“A violência contra a mulher no exercício da profissão, cometida pelo paciente ou por outro profissional, é uma realidade. No Rio de Janeiro, o percentual de notificações de mulheres médicas sempre superou o de homens”, diz a ginecologista e obstetra Ana Cristina Russo, diretora do CREMERJ. “Seis em cada dez médicas (62%) foram vítimas de assédio em seus ambientes de trabalho. Além disso, 74% testemunharam ou souberam de casos de assédio envolvendo colegas de trabalho. Considerando a subnotificação, o número de boletins de ocorrência registrados em delegacias de polícia pode ser ainda maior”. Três dos 26 estados – Paraíba, Rondônia e Amapá – ainda não consolidaram os dados de 2024.

“Por um lado, o usuário já chega à unidade insatisfeito. Por outro, o médico já sai de casa frustrado”

— Augusto Ribeiro, presidente do Sindicato dos Médicos de SP

O estado mais violento é São Paulo. Sozinho, responde por 832 ocorrências. Dessas, quase 50% foram contra médicas, e mais da metade na capital – 45% dos crimes ocorreram em hospitais, 18% em postos e 17% em clínicas. “É o pior de dois mundos”, resume o psiquiatra Augusto Ribeiro, presidente do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo). “Por um lado, o usuário já chega à unidade insatisfeito. Na hora de cobrar melhorias, transforma sua insatisfação em agressividade. Por outro, o médico já sai de casa frustrado. Muitos atendem mais de 5 mil famílias por equipe de Atenção Primária à Saúde”.

A prefeitura de São Bernardo do Campo (SP), a 22 km da capital, mandou instalar um botão de pânico em suas unidades de saúde. Em caso de emergência, o alarme aciona guardas municipais e seguranças particulares. Os seguranças são patrimoniais e, como o nome diz, protegem apenas o patrimônio das unidades. Quem responde pela segurança de médicos e enfermeiros é a GCM (Guarda Civil Metropolitana) e a Polícia Militar.

No ranking da violência, Paraná e Minas Gerais ocupam, respectivamente, o segundo e o terceiro lugares, com 767 e 460 boletins de ocorrência. “No Paraná, há sobrecarga de trabalho e déficit de profissionais. Ou seja, paciente demais e médico de menos. Isso gera frustração e impaciência no paciente e na sua família”, analisa o neurocirurgião Carlos Alexandre Zicarelli, coordenador da Comissão de Prevenção à Violência Contra o Médico do CRM-PR. “Agredir o médico não resolve o problema. Pelo contrário. Só piora”.

O pediatra Marconi Soares de Moura, diretor do Sinmed-MG (Sindicato dos Médicos de Minas Gerais), concorda com a afirmação. “Quanto mais violento o ambiente de trabalho, maior a rotatividade de médicos e enfermeiros. O serviço público de saúde atrai e fideliza cada vez menos profissionais experientes e qualificados. Isso prejudica o direito à saúde de qualidade da população”.

Os números de boletins de ocorrência registrados por médicos ao longo da última década (veja mais abaixo) se mantiveram em um patamar mais elevado após a pandemia de Covid-19. Segundo sugerem os dados, o período alterou a relação da população com serviços de saúde. No início, a situação de superlotação de unidades, equipes sobrecarregadas e o medo de uma doença viral até então desconhecida, que fazia crescer o número de óbitos no país, motivaram mais casos de comportamentos mais agressivos. Só que, passado o momento de crise, a insatisfação com os serviços de saúde parece ter permanecido. E a visão dos profissionais de saúde, historicamente positiva, pode não ter saído intacta.

 Esther Santana Mapa da violência contra médicos no Brasil — Foto: Esther Santana

Outros dois estudos se somam ao levantamento do CFM e ajudam a reforçar essa tese. Um é da Abramede (Associação Brasileira de Medicina de Emergência). O outro é do Coren-SP (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo), que indica que, além dos médicos, enfermeiros também são alvo de calúnia, injúria e difamação.

A pesquisa do Cofen destaca que 19,7% dos enfermeiros relataram já terem sofrido violência. Entre os ataques mais comuns, 66,5% são psicológicos e 15,6% físicos. E mais: 29% não se sentem seguros em seus locais de trabalho. Quem não sofreu violência, já testemunhou alguém sofrendo. É o que dizem 40,3% dos 769 profissionais de saúde entrevistados pela Abramede – a maioria (84%) médicos.

O CFM aconselha a vítima a denunciar o caso à polícia. Além de registrar o boletim de ocorrência, a recomendação é informar as diretorias clínica e técnica da unidade onde trabalha e apresentar os dados dos envolvidos e de testemunhas. Em casos de ameaça, o registro de ocorrência pode ser feito online. Quando houver agressão física, o boletim precisa ser registrado presencialmente, porque há necessidade de exame do corpo de delito.

“O boletim de ocorrência é importante porque dá visibilidade ao problema, garante a responsabilização dos agressores e produz estatísticas confiáveis”, explica o neurocirurgião Carlos Alexandre Zicarelli, do CRM-PR. O estudo da Abramede observa, porém, que não é todo médico que se dá ao trabalho de ir até a delegacia para registrar queixa – 50,8% deles não o fazem. Acham a medida inútil.

Entre os impactos mais relatados pelos médicos que sofreram violência no trabalho estão: estresse pós-traumático (88,4%), pedido de demissão (49,5%) e afastamento temporário (10,5%). Muitas vítimas, com diagnóstico de burnout, depressão ou ansiedade, começam a fazer uso de medicação controlada, participam de sessões de psicoterapia e precisam de mudanças no seu estilo de vida, como atividades de lazer e exercícios físicos. Outro dado preocupante: 74,8% dos médicos agredidos admitem que a violência sofrida impactou na interação com o paciente.

“A violência contra médicos e enfermeiros torna o ambiente de trabalho inseguro e perigoso e impacta a saúde física e mental dos profissionais da área”, afirma a psicóloga Ana Maria Rossi, fundadora e presidente da International Stress Management Association (Isma- BR). “Considerada uma das principais causas de burnout, pode gerar erros médicos, falta de empatia e alta rotatividade. A prevenção inclui estipular limites e praticar o autocuidado”.

O estudo do Coren-SP também preocupa: 8 em cada 10 enfermeiros disseram já terem sofrido violência nos últimos seis meses. Na maioria das vezes, a agressão é verbal (88%), desde apelidos humilhantes a gritos. Mas, há casos de violência psicológica (78%) ou física (21%). Como mostrou reportagem do Fantástico, da TV Globo, a técnica de enfermagem, Evelyn Rossi, de 27 anos, levou um tapa no rosto de uma paciente em Guarulhos (SP). A agressora não gostou do número de dias de afastamento concedido pelo médico.

Insatisfação com o serviço (46,8%) é o terceiro motivo mais alegado por enfermeiros. Os dois primeiros são: demora no atendimento (65,5%) e estrutura da instituição (55,3%). 71% dos casos ocorreram na rede pública de saúde, o SUS, e 29% na rede particular. “Não por acaso, 70% dos enfermeiros classificam sua atividade como desgastante”, afirma Daniel Menezes, do Cofen.

Para o CFM, a cura para a violência envolve a aprovação de leis mais duras, como o P.L. no 6.749/2016, que agrava as penas para crimes cometidos contra profissionais da saúde. Aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto de lei seguiu para o Senado em maio. Até o momento, as únicas punições previstas abrangem, entre outras sanções, pagamento de um salário mínimo, a prestação de serviços comunitários e a imposição de um limite de distância do agressor.

“É um espaço de acolhida. Tratar a população como inimiga não resolve o problema”

— Augusto Ribeiro, vice-presidente do Simesp

No mês passado, o conselho publicou a Resolução 2.444/2025, que estabelece protocolos de resposta imediata à violência, controle de acesso e videomonitoramento em áreas comuns, respeitada a privacidade do paciente, e apoio jurídico e psicológico para os profissionais agredidos. A sociedade médica também articula com governadores dos estados a criação de delegacias especializadas em crimes contra a saúde para ajudar no combate à violência contra os médicos.

O aumento do policiamento divide opiniões. De um lado, Marconi Soares de Moura, apoia a decisão. “As Unidades Básicas de Saúde de Belo Horizonte passaram a contar com a presença de guardas municipais em novembro de 2024. Embora insuficiente, a iniciativa reduziu em 20% as notificações de violência e em 30% as agressões físicas”, afirma o diretor do Sinmed-MG.

De outro, Augusto Ribeiro, vice-presidente do Simesp, demonstra cautela. “O serviço público de saúde não deve ser um espaço para a polícia procurar foragidos ou punir crimes. É um espaço de acolhida. Tratar a população como inimiga não resolve o problema. O que resolve? Melhorar as condições de trabalho do médico e a qualidade do atendimento do cidadão”, argumenta.

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