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Em uma visita recente ao Brasil, a socióloga Mariana Hase Ueta, que é pesquisadora na Universidade de Wageningen, na Holanda, onde vive, teve uma surpresa quando foi ao supermercado. “Eu queria um iogurte, mas só encontrava os enriquecidos com proteínas”, diz Ueta, que participou do projeto “Proteína importa” da Universidade Técnica de Dresden e estudou o consumo de carne no Brasil e na China em seu doutorado. A pesquisadora brasileira usou o exemplo parafalar de um fenômeno que vem ganhando cada vez mais força no Brasil e no mundo: a obsessão por proteína.
O macronutriente encontrado principalmente em carnes, ovos, leite e derivados, leguminosas e oleaginosas, deixou de ser assunto de nutricionistas e ganhou protagonismo nos últimos anos.
De barras proteicas a iogurtes reforçados, pães “high-protein”, cafés e até mesmo água com adição de proteína, o consumo do nutriente parece ter virado sinônimo de saúde, músculos e emagrecimento.
A indústria alimentícia não perdeu tempo em transformar essa busca por proteínas em um mercado bilionário: segundo a consultoria Euromonitor, o setor de suplementos proteicos movimentou mais de US$ 20 bilhões (R$ 113 milhões, na cotação atual) globalmente em 2023, com crescimento projetado de quase 10% ao ano até 2030.
Ao contrário das gorduras e carboidratos, que passaram a ser relacionados à obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares, as proteínas escaparam da demonização nutricional, consolidando-se como um nutriente que — em tese — poderia ser consumido sem culpa ou riscos. Esse sucesso econômico se alimenta de mudanças no estilo de vida e da preocupação crescente com bem-estar, impulsionadas por influenciadores digitais e celebridades fitness nas redes sociais.
Parte da explicação para a ascensão das proteínas está na imagem positiva desse macronutriente, visto como saudável e essencial para o crescimento muscular e para manter a saciedade por mais tempo. “Houve mudança no consumo de proteína. Antes, as pessoas consumiam o mínimo, agora foram para o máximo”, aponta Silvia Isabel Rech Franke, professora do Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). O problema é que, quando o assunto é nutrição e saúde, mais nem sempre é melhor. “O consumo exagerado de proteínas não deixa de ser um modismo, e teríamos que ter preocupação. Tem alguns benefícios, mas a partir do momento em que há um desequilíbrio, pode haver riscos”, destaca o presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (Abran), Durval Ribas Filho.
Entre os possíveis prejuízos dessa obsessão proteica estão a sobrecarga de rins e fígado, aumento de riscos de doenças cardiovasculares, desenvolvimento de comportamentos alimentares obsessivos e — talvez o mais grave — consumo excessivo de ultraprocessados. À medida que suplementos e alimentos “proteinados” dominam as prateleiras, surge também a preocupação de estarmos, na realidade, diante de uma nova versão de antigos equívocos dietéticos, agora embalados com outras promessas nutricionais.
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Carboidratos, gorduras e proteínas formam o trio de macronutrientes essenciais para a alimentação humana. Enquanto micronutrientes, como vitaminas e minerais, são necessários em quantidades menores para o funcionamento saudável do organismo, são os “macros” que fornecem energia e mantêm funções vitais. As proteínas se destacam por sua capacidade de construir e reparar tecidos, incluindo músculos, pele e cabelos, além de desempenharem um papel fundamental na produção de hormônios e enzimas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o consumo diário de proteínas deve corresponder a algo entre 10% e 15% do total calórico diário de um adulto saudável. Já o Dietary Reference Intake (DRI), sistema norte-americano de referência nutricional utilizado para estabelecer recomendações diárias, sugere que as proteínas respondam por 10% a 35% das calorias diárias totais, dependendo da faixa etária, das condições de saúde e do estilo de vida da pessoa. Na prática, a maioria dos nutricionistas calcula algo entre 0,8 e 2 gramas por quilo todos os dias, dependendo do nível de atividade física, idade, necessidades e objetivos individuais.
“Não vou dizer que, dos três, a proteína é a mais importante, mas certamente ela é a base para toda a construção e reparação muscular”, explica o presidente da Abran. Para completar, a proteína é o macronutriente que mais proporciona saciedade, além de exigir mais energia quando é quebrada pelo organismo. Não à toa, virou a aposta de quem quer perder peso. Em 2016, um estudo da Universidade McMaster (Canadá), publicado na revista científica American Journal of Clinical Nutrition, mostrou que dietas ricas em proteínas são mais eficientes para preservar massa magra durante o processo de emagrecimento, em comparação às que privilegiam carboidratos ou gorduras.
Esse cenário de valorização das proteínas caiu como uma luva para a indústria de laticínios, que não sabia o que fazer com um subproduto da produção de queijos sem valor comercial significativo: o soro do leite, nome popular do whey. Até os anos 1970, o whey era usado principalmente como ração animal ou descartado em rios ou aterros sanitários.
Tudo começou a mudar a partir dos anos 1980, quando cientistas desenvolveram novas técnicas, como a ultrafiltração e a microfiltração, que permitiam concentrar a proteína do soro do leite, retirando a lactose, gordura e água em excesso. A inovação tecnológica coincidiu com o crescimento do fisiculturismo e da cultura fitness, especialmente nos Estados Unidos. Atletas e praticantes de musculação buscavam alternativas práticas para aumentar o consumo proteico, considerado fundamental para ganho muscular e recuperação pós-treino.
O timing foi perfeito: o whey passou a ser visto como uma fonte prática, rápida e eficiente de proteínas de alto valor biológico, por conter todos os aminoácidos essenciais em grande quantidade. Além disso, seu uso coincidiu com o crescimento de uma classe média com maior poder aquisitivo, preocupada com saúde, bem-estar e aparência. O status associado ao consumo de proteínas, antes fortemente vinculado ao consumo de carnes, encontrou no whey uma versão moderna e acessível, impulsionada pelo marketing eficaz e pelo apelo científico em torno do suplemento.
Em poucos anos, o whey protein saiu dos círculos restritos das academias para ganhar um espaço privilegiado nas prateleiras dos supermercados e se transformar em um dos maiores sucessos comerciais da indústria de suplementos alimentares. “Muitas vezes o marketing é agressivo e as pessoas estão buscando coisas rápidas. É uma jogada da indústria, uma aposta em milagre”, afirma a nutricionista Diene da Silva Schilickmann, pesquisadora na Unisc.
A brecha dos ultraprocessados
Para Ueta, socióloga da Universidade Wageningen, a “moda das proteínas” seria, no fundo, uma junção entre a disseminação de uma narrativa nutricional “reducionista” e o apelo de novos produtos da indústria. “Quando a nutrição virou uma ciência que mede proteína ou carboidrato, e não entende a alimentação como um fenômeno mais amplo, passamos a ter um reducionismo em torno dos nutrientes. E, quando temos esse tipo de abordagem muito restritiva e reduzida, corremos o risco de a alimentação não ser saudável”, afirma. O fenômeno ajudou a dissociar as proteínas dos alimentos e a apresentar à população novas maneiras de consumi-las. “Isso dá a impressão de que estamos na moda da proteína, mas na verdade é a moda do suplemento”, completa a socióloga.
No Brasil, a moda se insere em um contexto mais amplo de mudanças alimentares impulsionadas pela urbanização, a globalização, alta na renda e educação. De acordo com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), o consumo de arroz e feijão no Brasil teve queda significativa ao longo das últimas décadas: o arroz caiu de 40 kg/ano em 1985 para 29,2 kg/ano em 2023; o feijão, de 19 kg/ano para 12,8 kg/ano. A tendência apareceu também nos dados da última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em 2020. De 2008/2009 a 2017/2018, a frequência de consumo de feijão caiu de 72,8% para 60,0%, de arroz de 84,0% para 76,1%.
Em 2023, um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) projetou que, em 2025, a maioria da população brasileira adulta deixará de comer arroz e feijão regularmente. Ao mesmo tempo, os alimentos ultraprocessados — aqueles que são impossíveis de serem feitos em casa, como salgadinhos, refrigerantes e nuggets, mas incluem também opções “fit”, como barras de cereais, bebidas lácteas enriquecidas e pães industrializados — vêm se tornando cada vez mais presentes na dieta dos brasileiros. Essas opções fornecem, em média, cerca de 19,7% das calorias diárias dos adultos e 27% das dos adolescentes, segundo a POF. “Em nome da praticidade, as pessoas vêm trocando alimentos tradicionais, comida de verdade, por alimentos ultraprocessados”, aponta Franke.
Esses alimentos geralmente contêm grandes quantidades de açúcar, sódio, gorduras saturadas, além de conservantes e aditivos artificiais, que aumentam o risco de doenças metabólicas e câncer. Em 2019, um estudo de coorte que acompanhou quase 20 mil espanhóis com idade entre 20 e 91 anos por 14 anos, identificou que o consumo frequente de ultraprocessados está relacionado ao aumento de obesidade, hipertensão, diabetes tipo 2 e maior risco de doenças cardiovasculares. Consumir mais de quatro porções diárias de ultraprocessados representou um aumento relativo de 62% no risco de mortalidade por todas as causas. Para cada porção adicional de alimento ultraprocessado, a mortalidade geral aumentou em 18%.
Autor de Gente Ultraprocessada - Por que Comemos Coisas que Não São Comida, e Por Que Não Conseguimos Parar de Comê-las (Editora Elefante, 2024), o infectologista Christopher van Tulleken defende que alimentos ultraprocessados deveriam receber o mesmo tratamento dado a cigarros. Professor da Universidade College London e infectologista no Hospital de Doenças Tropicais de Londres, van Tulleken se submeteu a uma dieta na qual 80% dos alimentos eram ultraprocessados. No período, ganhou mais de seis quilos, seus hormônios reguladores da saciedade e fome ficaram totalmente descontrolados e seu cérebro passou a associar comida com recompensas.
“Mais” é diferente de “melhor”
Se os efeitos nocivos dos alimentos ultraprocessados estão bem documentados pela ciência, os riscos do consumo excessivo de proteínas — especialmente na forma de suplementos — ainda são menos conhecidos, e frequentemente ignorados. Isso porque é difícil separar o consumo em excesso de proteína do contexto em que ela vem sendo ingerida: muitas vezes em produtos ultraprocessados, ricos em aditivos, açúcares e gorduras saturadas. Além disso, a crença de que proteína é um nutriente “sem limites” contribui para um consumo desregulado, com potenciais impactos à saúde.
Pesquisas mais recentes começam a apontar associações preocupantes. Em 2020, um estudo feito na Universidade de Washington (EUA) com modelos animais investigou os efeitos de dietas ricas em proteína sobre o risco cardiovascular. A pesquisa mostrou que aquelas com mais de 22% das calorias provenientes de proteínas aumentaram o risco de aterosclerose (acúmulo de placas nas artérias). Isso ocorreu independentemente do peso corporal ou da ingestão total de calorias. A causa estaria relacionada à leucina, um aminoácido abundante em proteínas animais e suplementos como o whey, que contribui para processos inflamatórios associados à formação das placas.
Além dos riscos cardiovasculares, há preocupação de que o consumo prolongado de grandes quantidades de proteína possa sobrecarregar rins e fígado — especialmente em pessoas com predisposição ou doenças pré-existentes. É o que explica o gastroenterologista e nutrólogo Dan L. Waitzberg. “Altas quantidades de proteína podem sobrecarregar os rins, em particular em indivíduos com doença renal crônica, pela necessidade de maior excreção de ureia e outros produtos residuais. No fígado, o excesso de proteína pode causar certo estresse, mas em pessoas saudáveis, o órgão geralmente consegue metabolizar adequadamente quantidades normais”, afirma Waitzberg, que é professor do Departamento de Gastroenterologia Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
Há também efeitos menos visíveis, mas igualmente preocupantes. O uso intensivo de suplementos está, em alguns casos, associado a distúrbios alimentares. Há uma década, o psicólogo Richard Achiro fez esse alerta durante a convenção anual da APA (Associação Americana de Psicologia).
Achiro entrevistou 195 homens que consumiam regularmente suplementos como whey protein, creatina e cafeína em pó, e que faziam exercícios físicos regularmente. Ele verificou que mais de 40% aumentaram o uso dos suplementos ao longo do tempo, e 22% substituíram refeições regulares por suplementos. Quase um terço relatou estar preocupado com o uso dos produtos, e 8% relataram problemas de saúde relacionados a eles. Achiro concluiu que esse comportamento estava associado a distúrbios alimentares e insegurança em relação ao corpo, especialmente em homens que apresentavam baixa autoestima, conflitos com ideais tradicionais de masculinidade e exposição a imagens corporais irreais na mídia.
Outro aspecto frequentemente negligenciado é a origem da proteína consumida, pois nem todas as fontes têm os mesmos efeitos no organismo. Um estudo que tem entre as autoras as pesquisadoras da Unisc, realizado com praticantes de musculação no Rio Grande do Sul, observou que a maior parte da ingestão proteica desses indivíduos vinha de fontes animais — em média, 80% da ingestão total de proteína.
A análise publicada em 2024 na Revista da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba apontou uma correlação positiva entre o consumo de proteína animal e indicadores como peso corporal, índice de massa corporal (IMC) e gordura visceral. Em contrapartida, o consumo de proteína vegetal apresentou correlação inversa com esses mesmos parâmetros. As autoras sugerem que, além da quantidade, a qualidade e a origem da proteína devem ser levadas em conta ao avaliar seus impactos sobre a composição corporal e a saúde.
Embora o estudo não tenha investigado as alterações em indicadores de saúde por causa do excesso de proteínas, um dos pontos que chamou a atenção das autoras foi que pessoas que consumiram 3 gramas de proteína por quilo corporal não apresentaram muito mais massa muscular do que quem consumia até 2 gramas por quilo. “Às vezes o excesso não traz o benefício que a pessoa pensa que vai ter”, destaca Franke.
A crença de que mais proteína é sempre melhor parece ignorar também que existe uma quantidade aproximada que é considerada suficiente para qualquer pessoa. Nos Estados Unidos, 16% das calorias ingeridas pelos homens e 15,7% pelas mulheres vêm de proteínas, segundo dados mais recentes da National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES), pesquisa de nutrição dos adultos conduzida pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), valor que está na média superior recomendada pela OMS.
Não existe nutriente milagroso
Mais do que pesar os benefícios e riscos de uma dieta rica em proteínas, especialistas apontam para a necessidade de repensar a alimentação como um todo. “Comer tem que ser algo agradável, e a pessoa não vai comer só proteínas ou só carboidratos. Não tem como fechar uma alimentação equilibrada só com um macronutriente”, afirma Franke.
A socióloga Mariana Hase Ueta destaca que o consumo de alimentos não pode ser tratado como um fenômeno puramente individual. “Não é realista pensar que a gente faz as escolhas que quer. Não dá para falar que todo mundo pode escolher ter uma alimentação saudável, quando o acesso aos alimentos é muito diferente para cada um”, explica. Também não é possível descolar a alimentação de toda a cadeia produtiva — no caso das proteínas, por exemplo, o fato de terem origem principalmente animal levanta preocupações ambientais, já que a pecuária é apontada como uma das maiores emissoras de gases de efeito estufa, além de estar ligada ao desmatamento.
Na visão de Ueta, a atual obsessão pelas proteínas, especialmente em sua forma isolada e industrializada, revela mais do que uma tendência nutricional — escancara como a alimentação vem sendo moldada por lógicas de mercado, pressões sociais e desigualdades no acesso ao que colocamos em nossos pratos. “Não me impressiona que [os suplementos] sejam um sucesso. Eles vêm atender alguns tipos de necessidades ou desejos que as pessoas agora têm.
O engraçado é pensar de onde vêm essas necessidades. Como foi criada essa rotina em que não temos nem tempo para cozinhar?”, questiona. “Eles são uma resposta a uma conjuntura muito ruim — e não são uma resposta necessariamente boa.”
Para Waitzberg, equilíbrio precisa ser a palavra-chave. Isso envolveconsiderar as necessidades individuais — que variam conforme idade, rotina e nível de atividade física — e distribuir a ingestão ao longo do dia, em vez de concentrá-la em uma única refeição. Também é fundamental diversificar as fontes, combinando proteínas animais e vegetais para garantir um perfil completo de aminoácidos, e estar atento a sinais de consumo excessivo, especialmente em pessoas com condições pré-existentes. Silvia Franke, da Unisc, concorda, e reforça sobre a importância de ter consciência de “ouvir um profissional capacitado para prestar uma orientação individualizada e não só ir atrás de tudo o que aparece na internet”. Afinal, como destaca Franke, “não existe alimento milagroso”.