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O remake da novela Vale Tudo, na TV Globo, trouxe de volta uma das vilãs mais marcantes da teledramaturgia brasileira, Odete Roitman. Retrato da soberba da elite, a personagem teve suas falas marcantes eternizadas por memes na internet, tornando-se um ícone do público.
Assim como na primeira versão da telenovela, lançada em 1988, Odete Roitman morreu no capítulo exibido no dia 6 de outubro. Mas, mesmo já conhecendo a história, o público do remake não queria que a personagem morresse. Uma pesquisa do Datafolha revelou que 47% dos telespectadores preferiam que ela ficasse pobre e apenas 4% das pessoas desejavam a morte da vilã — diferentemente de quando a versão original foi exibida, em que 38% dos entrevistados preferiam o destino mais trágico. Mas o que explica, afinal, a melhor recepção à protagonista?
De acordo com especialistas, isso tem a ver com a construção das vilões escolhida por autores de novela contemporâneos, que tendem a aproximá-los do público. “Houve uma alteração do perfil que se considerava vilã ou até vilão nas novelas ao longo do tempo. E isso deve ser uma coisa interessante, que é fazer com que vilões ou vilãs fossem mais parecidos com as pessoas normais, isto é, que tivessem os seus conflitos e as suas contradições”, ressalta Immacolata Vassallo, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da USP), para a GALILEU.
Por que as vilãs (como Odete Roitman) fazem tanto sucesso?
“[O autor de novelas] Gilberto Braga, mais do que qualquer outro autor, trouxe glamour à vilã e uma crítica ácida – mas honesta – sobre a sociedade, o mundo", diz Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia pela USP e autor do livro A Hollywood Brasileira - Panorama da Telenovela no Brasil. "Mulheres empoderadas, desde sempre, podiam falar sobre tudo e sobre todos com olhar crítico. E Odete Roitman sintetizou essa construção psíquica iniciada na obra do autor, passando a simbolizar a ‘vilã perfeita, que todos amam odiar ou que odeiam amar’”.
“Com luxo, glamour, bela e culta, Odete Roitman podia dizer coisas que a plateia não teria coragem de dizer. Conclusão: também por meio da vilania, a arte cumpre o seu papel de propiciar a catarse coletiva”, ressalta Alencar.
Em resumo, embora Odete apresentasse características maldosas, ela esbanjava carisma — algo destacado pelas redes sociais, que contribuíram para engajar a fama da vilã e reproduzir os termos “lastro” e “monta”, como em uma das suas frases mais marcantes. “Nós não temos lastro, nem intimidade para uma agressão dessa monta”.
“No caso específico de Odete Roitman, foi introduzido o humor, algo que também havia em algumas outras vilãs”, explica Immacolata. “Ela diz barbaridades, mas é com ironia e com humor. De qualquer forma as pessoas riem. Nesse sentido, ficou bem diferente da Odete Roitman original (1989), da Beatriz Segall. Era uma outra figura, ela tinha pouco humor e detestava o país”, compara Immacolata.
Odete Roitman não é a primeira vilã a causar comoção nacional. Outras personagens carregadas de vilania também fizeram a população brasileira tornar a novela das 9 um evento. Responsáveis por marcar gerações, Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) e Carminha (Adriana Esteves) também carregam carisma, falas marcantes, poder e objetividade. Segundo os especialistas, personagens como elas reforçam o empoderamento feminino ao tomarem o controle de suas escolhas e da sua própria vida.
“Elas conseguem fazer aquilo que querem, que se propõe a fazer e fazem”, disse Immacolata. “Então, não tem obstáculos que as prendam. E por isso que a gente fala de vilãs e não tanto de vilões, que tem, sem dúvida alguma, essa questão de gênero. É como se elas fossem a desforra com relação ao homem, seja o marido, seja quem fosse”, reforça. Na maioria das vezes, as relações de poder das vilãs envolvem dinheiro, como acontece nos casos de Carminha e Odete Roitman.
“Não há vilã sem poder. Isso desde as primeiras, na década de 1960, quando surgiu a telenovela diária. A consequência disso é que a visão pública irá associar vilania ao “capitalismo selvagem”, a uma elite que só transita em benefício próprio. Por aí, percebe-se como a arte tem implicações que vão muito além da ficção onde as vilãs são excelentes exemplos”, disse Alencar.
No entanto, Immacolata pontua que nem todas as vilãs de sucesso são ricas, e que algumas personagens estão cercadas pelo patriarcado. “No caso da Carminha, quem tinha dinheiro era o marido. Naquelas relações de gênero, ela é uma mulher submissa. Apesar de todas as coisas que ela fazia e de ter um amante, a situação financeira era dada pelo marido. Diferente da Odete Roitman, que faz questão de dizer que casou, mas fez a própria fortuna. Portanto, ela não deve a nenhum homem, não foi herança, foi ela mesma.”
Identificação com o público
As novelas brasileiras ainda conseguem parar o país em capítulos marcantes como o desta sexta-feira (17), que vai revelar o assassino de Odete Roitman. Mas, para além do entretenimento, as telenovelas também são espelhos da realidade. “As histórias se tornaram cada vez mais parecidas com a vida real. E por isso que a meu ver a grande persistência da novela como uma obra que ainda para o país, é que as pessoas se reconhecem, se identificam”, reforça Immacolata.
A pesquisadora ressalta que a maioria das personagens femininas são protagonistas de um retrato social. “Se tornam populares por uma identificação. Somos um país de grandes desigualdades e quantas mães solos existem? Em quantas residências o homem não está?”, indaga. “É apenas ela que cria os filhos e trabalha. Isso não está apenas no imaginário, está nos telejornais e etc. A questão da vilania também anda com o tempo, porque se não a identificação não acontece.”
As vilãs conseguem afetar o público de alguma forma e por isso, transpassam gerações. Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), protagonista e vilã de Senhora do Destino (2004), vivia em um bairro humilde, mas queria ter um padrão luxuoso de vida. Ela assassinou pessoas, roubou bebês e tentava manter o controle da vida das pessoas ao seu redor de maneira egoísta.
Até hoje, Nazaré gera bons memes na internet devido algumas cenas ou frases clássicas como “eu quero minha mãezinha” ou “gostosa pra caramba” — esta última se tornou estampa de uma das camisetas em uma coleção da C&A.
“Os bordões do século passado que se transformaram nos memes atuais, vide o sucesso de Nazaré Tedesco (Renata Sorrah) ou Branca Letícia de Barros Mota (Susana Vieira) na internet, com a ascensão das redes sociais como Facebook, Twitter e Tik Tok. Mas lembro a você que esse expediente narrativo já existia desde a década de 1970”, reforça Alencar. A vilã Carminha também segue imortal na internet e suas falas ainda são perpetuadas nos memes.
Tem outra: a interação com quem assiste, e a capacidade da opinião do público intervir no curso da história se tornou muito maior. “A novela continua uma obra aberta. Ela vai se fazendo conforme o público. Hoje nós temos outro personagem fantástico que são as redes sociais: onde o público está está nas redes sociais e faz das redes sociais a sua voz”, afirma Immacolata. “Antes, as pessoas discutiam a novela com quem estava do lado no sofá. As coisas mudam e de repente o público pode mudar o final de Vale Tudo.”