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Milhares de famílias se espalham pelas praias de Pernambuco e Alagoas todos os anos em busca de descanso, natureza e Sol. Ao longo de 130 km de litoral, encontra-se a Costa dos Corais, a maior unidade de preservação marinha do Brasil e também uma das maiores do mundo. Os recifes formam piscinas naturais de águas cristalinas, especialmente em cidades como Maragogi (AL) e Porto de Galinhas (PE), onde os turistas nadam e tiram fotos na presença de uma das maiores heranças culturais do país.
Mas os ventos não trazem boas notícias. A Costa dos Corais e seus recifes de quilômetros podem estar com os dias contados por causa das mudanças climáticas. Pressionados pelo aumento da temperatura da água e pelo estresse do calor, os recifes podem enfraquecer e morrer, prejudicando não apenas o turismo, mas também a segurança do litoral brasileiro contra catástrofes. E o pior é que essa mudança pode ser irreversível.
A morte dos recifes de corais de águas quentes é um dos possíveis pontos de não retorno (“tipping points”) descritos pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. Segundo o órgão, pontos de não retorno são “limiares críticos em um sistema que, quando ultrapassados, podem levar a uma mudança significativa no estado do sistema, geralmente com o entendimento de que essa mudança é irreversível”. Ou seja: o ponto de não retorno é o máximo que um sistema consegue aguentar antes de ceder.
De acordo com diversos estudos, há uma série de sistemas ecológicos no mundo sob o risco de atingirem pontos de não retorno. Isso inclui as geleiras do Ártico, o cinturão do Sahel na África, as monções asiáticas, o pergelissolo (ou “permafrost”) em países do Hemisfério Norte, as florestas boreais e tropicais e muito mais.
“Não tem volta. Então, por exemplo, a fauna, as florestas que poderiam existir no primeiro clima não poderiam resistir às condições de temperatura e precipitação no segundo. Deixamos de ter floresta para ter pastagem, deixamos de ter caatinga para ter deserto. Um ponto de não retorno é uma mudança abrupta, radical”, resume José Marengo, cientista peruano radicado no Brasil e coordenador geral de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta Precoce de Desastres Naturais (CEMADEN).
A grande questão é que essas crises todas, em conjunto, produzem um futuro onde a sobrevivência humana fica cada vez mais difícil. “Mudanças tão abruptas e/ou irreversíveis são particularmente perigosas porque podem ocorrer em prazos curtos o suficiente para superar a capacidade das sociedades humanas de se adaptar às pressões ambientais. Como tal, os impactos de ultrapassar os pontos de inflexão climática seriam graves e generalizados, com consequências potencialmente catastróficas para os sistemas humanos e naturais”, afirma este artigo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), órgão de cooperação internacional formado por 38 países.
Em 2023, pesquisadores da Universidade de Exeter mapearam 26 pontos de não retorno que são motivo de preocupação. Desses, cinco foram considerados críticos por estarem “mais próximos” de acontecer: o colapso dos corais de águas quentes, o degelo da cobertura glacial da Groenlândia, o degelo da cobertura glacial do oeste da Antártica, o degelo do permafrost no Hemisfério Norte e o colapso do giro subpolar, uma área de circulação oceânica ao norte do Atlântico.
Os recifes de corais têm um papel ecológico essencial, oferecendo abrigo e alimentos para cerca de 25% das espécies marinhas. Mas não é só isso: eles também atuam como uma proteção natural contra tempestades, erosões e ressacas causadas pelas ondas do mar.
De acordo com o estudo Oceano sem mistérios – Desvendando os recifes de corais, da Fundação Grupo Boticário, os recifes de coral areníticos e rochosos que cobrem aproximadamente 170 quilômetros quadrados na região Nordeste, entre o sul da Bahia e o Maranhão, produzem uma proteção costeira que vale o equivalente a R$ 160 bilhões.
Sem esses recifes, seria preciso construir infraestrutura convencional de proteção costeira, ou seja, quebra-mares, diques, muros e paredões. Essas estruturas, obviamente, teriam custo muito maior do que o de apenas proteger os recifes que já existem e que, além de proteção, geram riqueza: estima-se que eles tragam R$ 7 bilhões por ano em receitas com turismo, o que corresponde a cerca de 5% do PIB do setor no Brasil.
As ondas de calor fazem com que os corais expulsem as microalgas fotossintetizantes (chamadas zooxantelas) que vivem dentro de suas células e produzem grande parte da energia necessária à sua sobrevivência. Com isso, os corais perdem a cor (“branqueiam”) e podem vir a morrer.
Em 2025, um estudo mapeou, pela primeira vez, os impactos de um evento global de branqueamento sobre os diversos ecossistemas de recifes brasileiros. 18 pontos foram analisados para observar as consequências da forte onda de calor que assolou o país entre 2023 e 2024. Quatro pontos da costa nordestina registraram mortalidade em massa de corais: Maragogi, em Alagoas (88% do total), São José da Coroa Grande e Porto de Galinhas, em Pernambuco (53% e 28%, respectivamente), e Rio do Fogo, no Rio Grande do Norte (38%).
Assim como os brasileiros, outros recifes estão ameaçados: a Grande Barreira de Corais (Austrália), que é o maior sistema de recifes do mundo, com mais de 2.300 km de extensão, os recifes do Caribe, os recifes do Indo-Pacífico (Sudeste Asiático) e os recifes do Oceano Índico (Maldivas, Seychelles, Maurício), entre outros.
Outro importante ponto de não retorno possível para os brasileiros é o da floresta amazônica. Cientistas temem o fenômeno da “savanização”, em que, por causa do aquecimento global, a farta cobertura verde da floresta será trocada por uma vegetação mais rasteira e espaçada, alterando para sempre o bioma.
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“O chamado ponto de não retorno, estimado entre 20% e 25% de perda da floresta, é baseado em modelos, e é difícil afirmar se já estamos próximos de um limite irreversível”, afirma Bruno Ferreira, pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), entidade civil sem fins lucrativos que produz e incentiva o trabalho científico relacionado à região.
“No entanto, existem sinais de alerta que mostram a gravidade da situação, como as secas severas e cada vez mais frequentes, a exemplo das de 2023 e 2024, e os incêndios florestais cada vez mais alarmantes, que degradam grandes áreas. Para atenuar esses riscos, precisamos reforçar a conservação e a preservação de territórios e áreas protegidas, combater queimadas, prevenir incêndios, frear projetos predatórios sobre a vegetação nativa e os ecossistemas naturais, restaurar áreas degradadas, financiar alternativas sustentáveis e reduzir as emissões globais”, recomenda o especialista.
Um estudo recente do Imazon apontou que a Amazônia perdeu quase 50 milhões de hectares de floresta nos últimos 40 anos (entre 1985 e 2024). “O principal destino da conversão da floresta é a pastagem: em mais de 90% dos casos, o primeiro uso é esse”, ressalta Ferreira. A pesquisa também mostrou que a floresta está ficando mais seca: 8 dos 10 anos mais secos foram registrados na última década.
José Marengo também alerta que a situação da Amazônia está próxima do ponto de não retorno, mas que ainda há tempo para mudar isso. “Há pesquisadores do INPE que mostram que, no leste da Amazônia, onde está Matopiba [região que compreende MA, TO, PI e BA] e a soja, onde há maior desmatamento, a floresta está se comportando como uma fonte de CO2, não mais como um sumidouro. É um dos sinais do tipping point. Mas isso não significa que já ultrapassamos o tipping point. Precisamos pensar em mitigação, redução das emissões de gases do efeito estufa, de modo a diminuir a probabilidade do tipping point”, afirma ele.
Para piorar, existe o sério risco de que esses pontos de não retorno tenham um efeito em cascata, com o acontecimento de um favorecendo o acontecimento de outro e assim por diante.
A Circulação Meridional de Capotamento do Atlântico (AMOC), por exemplo, é um sistema de correntes oceânicas no Oceano Atlântico que funciona como uma "esteira transportadora", levando água quente para o norte e água fria para o sul, e distribuindo calor, umidade e nutrientes pelo planeta. Se o gelo da Groenlândia derreter, isso traria um afluxo de água doce para o Atlântico Norte, o que poderia enfraquecer e desestabilizar a AMOC.
A paralisação da AMOC poderia levar a um aquecimento no Sul, potencialmente desestabilizando a camada de gelo da Antártida Ocidental. Poderia também afetar a Bacia Amazônica, que diminuiria sua umidade, e as florestas boreais, induzindo a um ressecamento generalizado na Europa e na Ásia, mas um aumento da precipitação na América do Norte.
E é claro que tudo isso pode ter consequências sérias para a vida humana. A maior ocorrência de fenômenos climáticos extremos, como ondas de calor, pode causar enchentes em áreas costeiras e secas em florestas. Já a perda de áreas cultiváveis, produto do aumento da temperatura e da falta de água, pode levar à insegurança alimentar de diversas populações. Há também o caso dos refugiados climáticos, grupos populacionais que estão se vendo expulsos de suas áreas devido à ação do clima. Entre outros exemplos.
Este estudo afirma que, dentro do SSP2-4.5, um cenário intermediário projetado pelo IPCC (nem aquecimento extremo e nem redução significativa das emissões), nove pontos de não retorno irão acontecer.
O relatório da Universidade de Exeter faz seis recomendações para que possamos impedir os pontos de não retorno. Alguns deles são relacionados a instituições, como pedir ao IPCC um relatório especial sobre o tema e recomendar a inclusão dos tipping points nas Contribuições Nacionalmente Determinadas, que são os planos individuais de cada país contra a mudança climática (documentos exigidos aos signatários do Acordo de Paris).
Mas a recomendação principal é a mesma de sempre: eliminar gradualmente os combustíveis fósseis e as emissões relacionadas ao uso da terra. No fundo, voltamos sempre a esse tópico: não existe enfrentamento sério das mudanças climáticas sem uma estratégia assertiva e rápida contra o aumento das emissões.
José Marengo afirma que, mesmo entre o meio científico, não existe consenso sobre os prazos dos pontos de não retorno. Eles podem acontecer mais cedo ou mais tarde — mas vão acontecer. “Os modelos são representações matemáticas da realidade. E a realidade é que é impossível reproduzir em um modelo todos os processos que acontecem na natureza. Esses pontos de não retorno podem acontecer no futuro, mas ainda há incertezas. Vai ser intenso o suficiente para destruir a Floresta Amazônica? Não sabemos. Sabemos que vai acontecer, mas não sabemos quando, nem quanto, nem como”, alerta o cientista.