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Nos dias ruins, a vida é um milagre. Nos dias bons, é um milagre. A vida é sempre um milagre”, diz um usuário agradecido do Tiktok. “Se você agradece, está afirmando o que você já tem”, diz outro. “Se você for grato de verdade, Deus não sacaneia ninguém. Tudo é um presente”, diz mais um. As hashtags “gratidao” e “gratidão” na rede social de vídeos reúnem 4,8 e 3,6 milhões de postagens, respectivamente. São verdadeiros cabides de manifestações de gratidão. Algo que, hoje em dia, é parte importante do estilo de vida de muita gente.
Em um mundo desigual, com guerras e crise climática como pano de fundo, dizer “obrigado” à vida pode soar algo meio descolado da realidade. Mas há argumentos para defender a ideia de que, se bem compreendida, a gratidão não é anestesia: é um estado emocional que realmente pode reorganizar nossa maneira de ver as coisas. E, se for cultivada da maneira certa, pode coexistir com o sofrimento, sem apagá-lo.
O tema ganhou força a partir dos anos 2000. Um estudo clássico de 2003, assinado pelos psicólogos americanos Robert A. Emmons e Michael E. McCullough, comparou o comportamento de pessoas que listaram razões pelas quais eram gratas com outras orientadas a focar nos incômodos diários. O primeiro grupo relatou maior bem-estar, menos sintomas depressivos e teve uma melhor percepção da própria saúde. E os efeitos podem ser consistentes se a prática for regular: mais trocas de afeto positivas, mais resiliência e, em alguns casos, ganhos na disposição física.
“A gratidão é um bom remédio”, disse Emmons em entrevista à GALILEU. “Ela dá resiliência porque nos lembra que todo acontecimento contribui para a totalidade da vida”. Emmons, professor da Universidade da Califórnia em Davis e autor de livros como Agradeça e Seja Feliz! e Gratitude Works!: A 21-Day Program for Creating Emotional Prosperity, ajuda a desenhar o mapa. O especialista divide “a gratidão enquanto sentimento”, que seria algo episódico ou passageiro, da “gratidão enquanto atitude”, isto é, uma forma de ver a vida.
Robert A. Emmons, professor da Universidade da Califórnia (EUA), sobre por que a necessidade de se sentir grato não deve ser imposta
Emmons pondera, entretanto, que temperamento e contexto podem alterar resultados. Pessoas com pessimismo crônico ou depressão podem reagir mal a estímulos de olhar para o copo meio cheio, o que pode até mesmo levá-las a sentir culpa por conseguir focar somente na parte vazia. Da mesma maneira, há evidências de que pessoas mais extrovertidas, que têm mais interações sociais, costumam ser mais gratas. E os mais introvertidos, autocentrados ou com instabilidade emocional, têm menor senso de gratidão. Por isso, intervenções jamais devem ser impostas. “Seria como dizer a alguém que está se afogando para nadar mais rápido. É exatamente isso que fazemos quando dizemos a uma pessoa cronicamente deprimida ou ansiosa para ‘se animar’ e ‘não se preocupar tanto’. É absurdo”, afirma. A função primária da gratidão, segundo o psicólogo, é lembrar nossa dependência da benevolência alheia e direcionar a atenção a quem faz por nós o que não faríamos sozinhos, traduzindo sentimento em ação.
Além do impacto no bem-estar, a ciência indica que a gratidão tem efeitos poderosos na vida social. De acordo com um estudo feito pela Associação Americana de Psicologia, ser grato ajuda a encontrar parceiros para socialização, ter consciência de benefícios recebidos e criar ciclos de reciprocidade. Pesquisas observaram que expressões de agradecimento aumentam a probabilidade de manutenção do vínculo e de ajuda futura. Nessa linha, a gratidão funciona como uma espécie de “cimento” comunitário. Isso foi algo especialmente válido evolutivamente falando: desde a formação dos primeiros grupos humanos, a gratidão tem efeito social e pode criar um círculo de boas ações. Afinal, quem é ajudado costuma querer ajudar de volta.
Essa dinâmica explica por que grupos de vizinhos, coletivos de mães e comunidades online se fortalecem quando a gratidão circula. Ela diminui comparações e pode atenuar ressentimentos. E também ajuda a superar momentos difíceis. Pacientes em luto frequentemente relatam um duplo movimento: de um lado, a dor que não some, e de outro a gratidão por ter sido amado, ou por ter recebido apoio “na hora H”.
É o que observa Miriam Rodrigues, especialista em psicologia clínica e medicina comportamental pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e membro da Appal (Associação de Psicologia Positiva da América Latina). Quando o reconhecimento se transforma em gesto — uma mensagem, uma ligação, uma conversa — o vínculo acaba se tornando mais forte. “Todos nós passamos por adversidades na vida, e é importante saber quem está por perto”, diz. “Eu sempre pergunto ao paciente: ‘qual foi o amigo ou a pessoa que te ajudou em tempos difíceis?’. E ele reconhece.” É aqui que precisamos separar gratidão de positividade tóxica. Pedir a alguém deprimido que essa pessoa tente ser grata costuma provocar culpa, não alívio — porque o sofrimento não está sendo reconhecido.
Como a gratidão muda você
Os efeitos da gratidão são perceptíveis. Estudos clínicos associam o sentimento a alguns marcadores fisiológicos positivos, como a redução de proteína C-reativa e da citosina IL-6, ligadas a inflamações. Há também evidências sobre a melhoria da qualidade do sono. Em pacientes com insuficiência cardíaca, diários de gratidão mantidos por oito semanas melhoraram a coerência cardíaca (quando batimentos, pressão arterial e respiração ficam no mesmo compasso) de pacientes. Revisões recentes ainda relacionam a gratidão a maior adesão a hábitos saudáveis e a resultados cardiovasculares melhores em testes.
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Estudos com imagens cerebrais mostram que sentir ou cultivar gratidão “recruta” o uso do córtex pré-frontal medial e o cíngulo anterior. Outro estudo mostrou que exercícios de gratidão ativaram de forma consistente o núcleo accumbens, um dos principais centros de recompensa do cérebro. Mais recentemente, pesquisas indicam que praticar gratidão ao longo de semanas pode remodelar a conectividade neural, fortalecendo redes de neurônios ligadas à regulação emocional e ao processamento de recompensas.
Ou seja, ser grato pode fazer o seu cérebro se adaptar às situações – o que os cientistas chamam de neuroplasticidade. “A neuroplasticidade é um fenômeno neurobiológico em que há mudanças, digamos, de configuração cerebral, seja elas funcionais ou anatômicas, frente a um determinado estímulo”, diz Li Li Min, membro do Brainn (sigla para Brazilian Research Institute for Neuroscience and Neurotechnology) e professor do Departamento de Neurologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “Quanto mais você pratica, mais essas mudanças se consolidam e se estabelecem. É como um treino de musculação na academia, ou academia do cérebro — mas, em vez de fazer a série do bíceps, você vai fazer a série da gratidão.
E o resultado, diz Nancy Huang, da ABN (Academia Brasileira de Neurologia), é que o cérebro acessa estados mentais positivos com mais facilidade. “A gratidão não é só um estado momentâneo: com o tempo, ela pode recalibrar circuitos que moldam nossa forma de perceber e reagir ao mundo”, afirma. Ela acrescenta que a repetição também está associada à liberação de neurotransmissores ligados ao prazer e ao bem-estar, como dopamina e serotonina, e à redução do cortisol, hormônio relacionado ao estresse. “A longo prazo, isso pode levar tanto a mudanças funcionais, como maior ativação em regiões de regulação emocional, quanto estruturais, como aumento de conectividade entre áreas corticais e subcorticais”, diz.
Para a especialista, há ainda distinções importantes entre a gratidão espontânea e a cultivada de forma intencional. “A gratidão espontânea é resultado de uma resposta emocional imediata, enquanto a gratidão deliberada depende de esforço consciente e repetição.” No entanto, a prática intencional pode ter efeitos notáveis na plasticidade cerebral. “Do ponto de vista da neuroplasticidade, a espontânea aciona circuitos já estabelecidos, enquanto a cultivada ajuda a criar e reforçar novos caminhos neurais. Com o tempo, a prática deliberada pode aumentar a chance de que a gratidão surja de forma espontânea, mostrando que um comportamento inicialmente treinado pode se tornar mais natural”. A gratidão, portanto, pode ser valiosa em tratamentos de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático.
Assim como ocorre com a meditação e mindfulness, exercícios de gratidão produzem um treino que reforça redes de controle de ações e de recompensa. Ou seja, quando pedimos ao cérebro que para considerar o copo meio cheio, ele se torna melhor nesse ofício conforme o pratica regularmente. A plasticidade não é um passe de mágica — é consequência de repetição organizada, com uma linguagem adequada.
Robert A. Emmons, professor da Universidade da Califórnia (EUA), em fala sobre a verdade gratidão e a importância de tornar o sentimento algo voluntário, não imposto
A gratidão é moeda corrente em tradições religiosas — da oração cristã a práticas budistas. Mas hoje já se converteu em produto. Livrarias e papelarias exibem cadernos estilizados; plataformas de bem-estar vendem assinaturas com exercícios diários; as redes sociais transformaram o hábito em estética, com vídeos de trilha suave e legendas edificantes. Daí surge a crítica à “indústria da gratidão”: o risco de mercantilizar uma experiência íntima e esvaziá-la.
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“É fácil baratear a gratidão”, diz Emmons. Uma rápida “scrollada” pelas hashtags do agradecimento nas redes pode mostrar sinais claros de que a prática pode ser tão banalizada quanto a ioga e o mindfulness se tornaram. Ou seja, esvaziadas de seu princípio, e usadas como meros apetrechos de estilo de vida instagramável.
Questões culturais também envolvem esse debate. Culturas mais focadas no indivíduo, como as ocidentais, veem de outra maneira. O que mobiliza um chinês ou japonês, afinal, pode não mobilizar um brasileiro; há países em que agradecimentos públicos são a regra, e outros em que soam exagerados demais. Esses contextos interferem em como as pessoas relatam a emoção e reagem a intervenções.
Em resumo, a gratidão não elimina conflitos nem corrige desigualdades, mas propõe outro ponto de vista sobre eles. Quando alguém pratica a gratidão, tende a ruminar menos e ter mais sensação subjetiva de suficiência. No cérebro, isso reduz a ativação do HPA (eixo hipotálamohipófise-adrenal), o sistema que regula a resposta do corpo ao estresse, e com ela, o banho constante de cortisol que desgasta vasos, coração e sono. Menos “alarme ligado” facilita a recuperação autonômica (processo em que o sistema nervoso autônomo busca recuperar a estabilidade, controlando atividades automáticas do organismo, como coração, pressão e respiração) e melhora a variabilidade da frequência cardíaca, indicador associado a maior resiliência. Esse pacote é que ajuda a dormir melhor, e também a regular o humor. O humor regulado, por sua vez, facilita as “escolhas de proteção”, conjunto de práticas pensado para favorecer o equilíbrio emocional e a saúde mental, de pessoas ou grupos.
Outro ganho tem origem comportamental. Afinal, quem se sente grato em relação a alguém ou a um grupo tende a agir de modo coerente com esse sentimento — é mais presente nas atividades, coopera e retribui. Em contextos de doenças crônicas, por exemplo, essa postura se traduz em adesão fiel a tratamentos. No trabalho, aparece como vontade de participar de tarefas ingratas; em família, vira a lembrança de fazer pequenas ajudas diárias.
Como exercitar a gratidão
O modo como a prática é guiada também importa. Exercícios muito vagos, que vemos em muitas hashtags por aí — “seja grato pelo ar que respira” — tendem a surtir pouco efeito. Os mais eficazes são específicos e relacionais: agradecer a alguém por um gesto concreto, reviver mentalmente a cena. E, por incrível que pareça, gastar um tempo escrevendo sobre ela. A forma mais pesquisada para exercitar a gratidão é anotando no papel. Isso envolve sentar, de uma a três vezes por semana, por alguns minutos, e efetivamente listar algumas coisas pelas quais você é grato.
Quando a gratidão vira só mais um item na lista de tarefas cotidianas, perde a precisão emocional e vira obrigação. Para agradecer outra pessoa, o melhor é nomear o bem feito (dizendo, por exemplo, “obrigado por revisar meu trabalho”), reconhecer o custo envolvido (“você abriu mão de algumas horas de descanso para isso”) e declarar o efeito produzido (“isso salvou nosso trabalho”).
A cultura também dita as dinâmicas. Sociedades altamente individualistas, como a ocidental, valorizam a autonomia e autorrealização; nelas, admitir dependência pode soar como fraqueza. Em culturas mais coletivistas, agradecer é etiqueta, rito e pedagogia desde cedo, pois a ênfase está na prioridade do grupo sobre o indivíduo.
Há, por fim, um debate público importante — a mercantilização da vida emocional. Diários, aplicativos e cursos não são vilões por si só, pois podem funcionar como portas de entrada para prática benéficas. O problema surge quando o gesto íntimo vira pacote de produtividade, vendido como atalho para “alta performance” e “mente inabalável”. Aí a gratidão deixa sua função afetiva e passa a ser instrumento de marketing de redes sociais. A “verdadeira” gratidão, diz Emmons, completa o ciclo entre receber e retribuir o bem. “Ela é virtude e traço de caráter, e não atitude; vem da percepção de bondade causada por outros e inspira a fazer o bem.” O que vale mesmo, no fim das contas, é o sentimento ser sincero, e servir como um motor para a ação e mudança de comportamento. Que fique registrado por escrito: obrigado por chegar até o final deste texto, leitor.