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No melhor mês do ano para os fãs de horror, nada melhor do que contradizer quem acha que no Brasil não são escritas grandes histórias assustadoras. Nada melhor do que lembrar que o país tem, sim, uma extensa tradição de contos perturbadores, publicados por nomes bem conhecidos e outros já totalmente esquecidos. Incontáveis provas disso estão em Tênebra, a biblioteca digital que este colunista coordena ao lado de Júlio França, professor da UERJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e referência nos estudos do gótico no Brasil.
Hoje, o site tem quase 240 obras para download gratuito, cada uma com sua porção de sombras e perturbações. Também já virou duas antologias publicadas pela editora Fósforo, uma delas dedicada ao século 19, e outra abrangendo a primeira metade do 20. Tendo tudo isso em vista, e para rechear seu Halloween de leituras apavorantes, selecionamos aqueles contos do passado que consideramos mais poderosos. Apresentados em ordem cronológica, todos estão em domínio público e você poderá baixá-los de nosso site, para ler agora mesmo. Vamos à lista:
Começamos no longínquo ano de 1849, quando foi publicado, no Jornal Scientifico e Litterario O Iris, este impressionante conto de Antônio Joaquim da Rosa, nascido na então Província de São Paulo. A história se passa na Vila de São Roque, interior paulista, em meados de 1820. Nela, uma mulher chamada Anacleta é perseguida por um furioso amante traído. Ela busca a proteção da feiticeira Escolástica Mendes – apelidada de Cará Mendes, que habitava uma floresta da região e parece ter realmente existido no interior de São Paulo.
Anacleta jura fazer de tudo por sua proteção. Então, a bruxa pede o sacrifício de seu próprio filho, ainda bebê. A jovem recua horrorizada, mas Cará Mendes a lembra de que já havia empenhado sua palavra. A feiticeira, então, arranca a criança à força da mãe, e as cenas que seguem são poderosas:
“A feiticeira, segurando pelas extremidades do corpo do menino e puxando-o violentamente para si, meteu de encontro o joelho esquerdo no espinhaço desse débil corpinho. Seus ossinhos cederam facilmente a esse choque encontrado, e estalaram. No mesmo instante a velha, pegando no inocentinho por um pé e fazendo-o três vezes voltear sobre a sua cabeça, o arrojou afinal ao seio dessa horrível caverna. Um vagido fraco e alquebrado rompeu as sinuosidades silenciosas desse abismo e ressoou aos ouvidos da miseranda mãe. Consumada estava a obra de Satanás.
Eis um clássico absoluto, presente em nove entre dez antologias de histórias assustadoras brasileiras. Publicado pela primeira vez em 1885, o conto narra a aproximação do jovem médico Garcia e de Fortunato, um “capitalista”. O primeiro é atraído pelo comportamento algo sádico do segundo, que se deleita com melodramas pesados no teatro e dá bengaladas em cachorros na rua.
Garcia e Fortunato acabam se aproximando, tornando-se sócios em uma clínica médica. Em meio a eles, há Antônia, esposa do capitalista, por quem Garcia se apaixona. Ela adoece e Fortunato acompanha, com um prazer que beira o fetiche, o sofrimento do amigo. É um personagem perverso, que de fato se nutre da dor alheia – alguns indícios disso são os experimentos cruéis que faz com animais. Neste sentido, “A causa secreta” tem uma das cenas mais marcantes de nossa literatura horrífica (vegan alert):
“Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunato queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa que havia no centro do gabinete e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado."
Simples na forma, este conto é, pelas camadas de que se reveste, um dos mais perturbadores de nossa literatura. Publicado em 1897 por Cruz e Sousa, catarinense que foi figura de proa do simbolismo no país, é protagonizado por um homem rico, “poderoso senhor de escravos”, que está à beira da morte. Cercado por familiares, amigos e pelegos, ele delira, relembrando-se de todas as atrocidades cometidas contra escravizados e, principalmente, escravizadas.
Mas não há qualquer traço de arrependimento; pelo contrário, o homem se lembra com volúpia, salivando ao reviver cada episódio. As cenas de indescritível crueldade ganham dimensão crítica diante do título do conto, e do fato que foram escritas por um homem negro, fervorosamente abolicionista. O trecho abaixo ilustra o que quero dizer:
“ah!, que visadas satânicas, diabólicas, que satisfação perversa me assaltava quando o feitor, bizarro, mefistofélico, de chicote em punho, lanhava, lanhava, lanhava os miseráveis e lindos corpos de certas escravas que não queriam vir comigo! Oh! lembra-me bem de uma que mandei lanhar sem piedade. A cada grito que ela soltava eu gritava também ao feitor: ‘Lanha mais, lanha mais!’ E o bizarro feitor lanhava! O sangue grosso e lento, como uma baba espessa, ia formando no chão um pântano onde os porcos vinham fuçar regaladamente! Com que febre, com que alucinação inquisitorial eu gozava essas torturas! Até mesmo, às vezes, via-me possuído de um extravagante desejo animal, de um desejo monstro de beber, como os porcos, todo aquele sangue. Lembro-me também de outra, bestialmente grávida, prestes a ser mãe, a quem eu, para saciar a minha sede feroz de ciúme, a minha sede de raiva, a minha sede de concupiscência suína, mandei aplicar quinhentas chicotadas, enquanto os meus dentes rangiam na volúpia do ódio saciado. Desta foi tamanha e tão atroz a dor, tão horríveis as contorções, enroscando-se como serpente dentro de chamas crepitantes, que esvaiu-se toda em sangue, abortou de repente e ali mesmo morreu logo, felizmente, lembro-me bem, com a boca retorcida numa tromba mole, espumando roxo e duas grossas lágrimas profundas a escorrerem-lhe dos olhos vidrados…”
Em se tratando de cenas hediondas, “Consciência tranquila” rivaliza com “Violação”, relato de cunho autobiográfico publicado pelo baiano radicado no Ceará Rodolfo Teófilo. Vindo de uma família de médicos, Teófilo enfrentou, com apenas nove anos, os horrores de uma epidemia de cólera no interior cearense, em 1862. E em 1898 publicou este longo relato, composto pelas memórias de um rapaz que, filho do único médico em uma cidadezinha no sertão cearense, sobreviveu à “invasão do mal”. Ainda criança, teve de carregar até o cemitério o cadáver da irmãzinha, morta pouco depois de nascer.
Mas o pior está por vir. Após sobreviver à epidemia e sair da cidade, o menino volta vinte anos depois, já homem feito, e lá reconhece um sujeito que também sobreviveu. Este, então, lhe conta uma história muito macabra, de quando era noivo, contraiu o cólera e foi dado por morto. Despertou na padiola na qual levavam os cadáveres até o cemitério, no meio de uma pilha de corpos, moribundo, sem conseguir se mexer ou falar. Então, nota que lançam um novo cadáver ao carrinho: o de sua noiva, que havia morrido. Chegando ao cemitério, os coveiros roubam as jóias que a moça usava e depois começam a jogar baralho. O propósito dessa disputa é hediondo, como revelam os seguintes trechos.
“Eu não sabia, até então, de quanto é capaz o instinto bestial; não avaliava a perversão do homem que se deixa dominar pela animalidade. A carne havia triunfado nas bestas humanas, à mercê das quais estava a virgindade dela e a paz de toda a minha vida. Eles tinham perdido a razão e, com ela, todos os escrúpulos da moral. Nem o espetáculo da morte e nem tampouco o receio da peste embotavam nos celerados os lúbricos desejos carnais!...
“O que havia ganhado o cadáver, e que devia violá-lo em primeiro lugar, ergueu-se e caminhou para o corpo. Não posso explicar o que se passou em mim quando me convenci de que ia ser consumado ali o mais nefando delito da bruteza humana. Quis erguer-me e livrá-la de ser prostituída depois de morta, e não pude!... Por maior que fosse a revolta que eu sentia, por mais intensa a descarga nervosa vibrada em meus músculos, estes não se mexeram e fiquei imóvel!... Como me doeu a minha nulidade!... Como me acabrunhou a minha inércia!... O meu eu havia percorrido em poucas horas todas as etapas de sofrimento, passado por todos os estádios da tortura, acredite! E, coisa estranha, eu sentia, sem que quisesse, nas ruínas do meu acabamento, em presença daquela cena carnal, uns frêmitos de sensualidade, ânsias da carne, que ainda não tinha de todo perecido!... A dissolução é a glorificação da matéria, o triunfo da animalidade; me convenceu o que vi e senti.”
Em 1903, a carioca Júlia Lopes de Almeida publica a tétrica história de Umbelina, jovem que trabalha em uma fazenda e engravida do filho do patrão. A primeira cena, ou melhor, a primeira frase do conto já indica o caminho pelo qual ele seguirá: “Quando a cabocla Umbelina apareceu grávida, o pai moeu-a de surras, afirmando que daria o neto aos porcos para que o comessem”. A seguir, o filho do fazendeiro a descarta, e então Umbelina decide se vingar, respondendo àquela violência com mais violência: terá o bebê na entrada da casa grande e depois o matará na frente do amante.
A jovem, então, caminha noite adentro até a sede, já sentindo as dores do parto. Acaba tendo o filho sozinha, numa cena bem dramática, e perde muito sangue. Assim que segura o próprio bebê, muda de ideia e decide não matá-lo. Mas está perto da morte, fraquíssima. E assim termina o conto:
“Foi no meio daquela doce transformação da luz que Umbelina mal distinguiu um vulto negro, que se aproximava lentamente, arrastando no chão as mamas pelancosas, com o rabo fino, arqueado, sobre as ancas enormes, o pelo hirto, irrompendo raro da pele escura e rugosa, e o olhar guloso, estupidamente fixo: era uma porca. Umbelina sentiu-a grunhir, viu confusamente os movimentos repetidos do seu focinho trombudo, gelatinoso, que se arregaçava, mostrando a dentuça amarelada, forte. Um sopro frio correu por todo o corpo da cabocla, e ela estremeceu ouvindo um gemido doloroso, dolorosíssimo, que se cravou no seu coração aflito. Era do filho! Quis erguer-se, apanhá-lo nos braços, defendê-lo, salvá-lo... mas continuava a esvair-se, os olhos mal se abriam, os membros lassos não tinham vigor, e o espírito mesmo perdia a noção de tudo.
“Entretanto, antes de morrer, ainda viu, vaga, indistintamente, o vulto negro e roliço da porca, que se afastava com um montão de carne pendurado nos dentes, destacando-se isolada e medonha naquela imensa vastidão cor-de-rosa.”
Fechamos a seleção com esta sinistra narrativa em moldura publicada em 1932 pelo maranhense Humberto de Campos, nome que também figura em várias antologias nacionais de horror. No bar de um navio, um argentino chamado Ramon Gonzales y Gonzales conta como se apaixonou por uma mulher muito mais nova, Consuelo, e como ela não quis se casar com ele. Então, ele jura secretamente que a possuiria, que o coração dela lhe pertenceria.
Ramon se aproxima da jovem e de seu pai, e os três se tornam amigos. Um dia, pai e filha vêm visitá-lo em sua cidade e, durante um passeio pelas florestas de um lugar chamado Alto Bermejo, na Argentina, os três são capturados por indígenas xurupinás. São antropófagos e acabam devorando a todos — menos ao narrador —, em um ritual macabro:
“— Consuelo era linda e forte. Vi quando a mataram, com uma pancada vigorosa no crânio... Como são feios os miolos, aparecendo, ensanguentados, entre a pasta dos cabelos!... Vi quando um dos seus seios, tão redondo, tão rígido, tombado do jirau, rolou na areia do chão, onde um velho cachorro o tomou nos dentes, indo devorá-lo escondido... Vi quando a esquartejaram, quando a retalharam, quando a distribuíram, em pedaços sangrentos. Impassível, como num sonho, eu via tudo. E só despertei do meu pasmo, quando um dos índios, o chefe, que tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta de gordura, me veio perguntar, em um gesto, que pedaço eu queria. Olhei as postas de carne fria, sobre as quais as moscas zumbiam com fúria: a mão miúda, de dedos contraídos, em um dos quais estava, ainda, um anel que eu lhe dera; um dos pés, meio devorado e com as cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça quase esfacelada, pendurada a um esteio pelos cabelos; a sua perna; a sua coxa; um dos seus braços, o mais lindo que eu tenho visto... Indiquei um pedaço de carne roxa, que aparecia, repugnante, entre as vísceras, o qual me foi trazido, e que eu comecei, também, a devorar.
“Estremeceu todo, e concluiu, enquanto um arrepio de horror me sacudia: — Era o coração. Havia cumprido o meu juramento…

há 3 semanas
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