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À primeira vista, horror e humor parecem não se dar muito bem. São emoções distintas, quase opostas. Enquanto o primeiro nos oprime e tensiona, o segundo nos expande e relaxa. Ficamos arrepiados quando sentimos algum perigo à espreita, o que tem a ver com suspense, e, portanto, com o desenvolvimento de uma história; e rimos quando há o oposto, uma quebra de expectativa dentro de uma narrativa. Parecem incompatíveis, a existência de um anulando a possibilidade do outro.
No entanto, se analisarmos com cuidado, existem semelhanças importantes entre horror e humor. No âmbito ficcional, são dois efeitos estéticos. Duas reações físicas que muitas vezes antecedem qualquer racionalização — nosso coração acelera com ruídos ou vislumbres antes mesmo que compreendamos o que causou isso, e soltamos risadinhas ou gargalhadas diante de quebras e intervenções críticas que só depois, pensando melhor, entendemos a fundo. Ambos os casos decorrem de estratégias discursivas específicas, organizadas de maneira a causar tais efeitos — há toda uma teoria a respeito disso na qual não entrarei aqui.
Agora, a convivência entre horror e humor numa mesma história tende a ser, sim, problemática. É preciso muita artimanha para equilibrar os elementos arrepiantes e cômicos dentro de um plano ficcional comum. Isso requer apurado senso de timing, saber transitar com inteligência entre esses dois territórios balancear diálogos. Caso contrário, o resultado será risível — e não da maneira pretendida.
As combinações entre riso e arrepio remetem também à paródia, gênero com características próprias, e nesse sentido já ocorrem há muito tempo. A abadia de Northanger, de Jane Austen, data de 1817 e parodia romances góticos, tão bem sucedidos na época. Catherine Morland, a jovem protagonista, é fanática pelas misteriosas histórias de castelos assombrados, e, ao ser chamada para a abadia do título, imagina que nela viverá aventuras desse tipo; mas o confronto com a realidade a frustrará. Nessa distância entre fantasia e vida real reside o comentário paródico de Austen.
Outro gênero bem estabelecido é a comédia de horror, próxima da paródia, mas que tem lá suas pretensões de assustar vez ou outra. Filmes como Zumbilândia, Garota infernal, Todo mundo em pânico e A morte te dá parabéns ilustram a ideia: o predomínio é do riso, entremeado por um arrepio ou outro, muitas vezes com resultados discutíveis. Aqui no Brasil, o gênero ficou conhecido como "terrir", e tem no cineasta carioca Ivan Cardoso um expoente, com filmes como O segredo da múmia e As sete vampiras.
Bem mais raras são as obras que equilibram horror e humor quase na mesma medida, deixando-nos numa corda bamba entre duas emoções tão distintas — e acrescentando a elas uma nova, a vertigem. Ainda no cinema, o filme O segredo da cabana, para mim, representa esse equilíbrio quase com perfeição. Escrito e dirigido por Drew Goddard, a tão surrada história de jovens que vão passar um final de semana em uma cabana na floresta vira outra coisa, depois outra, e depois outra — passa pela paródia, pela homenagem e pelo reality show, em todos os momentos dosando com inteligência os tons leves do humor e aqueles sinistros do horror. Outro exemplo é Entrevista com o demônio, escrito e dirigido pelos irmãos Colin e Cameron Cairnes, que reencena o pânico satânico dos anos 1970 em uma chave bem humorada no geral — até deixar de sê-lo.
Já na literatura, ninguém equilibra tão bem esses pratinhos quanto o estadunidense Grady Hendrix. Seu romance Manual das donas de casa caçadoras de vampiros acaba de ser lançado pela Intrínseca e vem se juntar aos sugestivos O exorcismo da minha melhor amiga e Como vender uma casa assombrada. Outros títulos ainda não lançados por aqui são The final girl support group (“O grupo de apoio às final girls”), Witchcraft for wayward girls (“Bruxaria para garotas rebeldes”) e Horrorstör (“Loja de departamentos de horror”, numa grafia que remete a grandes marcas escandinavas como a Ikea).
Os títulos — e a própria figura performática de Hendrix — indicam uma filiação à comédia de horror. Mas não se engane: o autor é capaz de nos descontrair e atemorizar com o mesmo talento. Seu projeto literário é sólido, feito por histórias que com frequência se passam nos anos 1980 e 1990 (que formaram uma era de ouro do gênero), localizadas na cidade natal de Hendrix, Charleston, na Carolina do Sul, e protagonizadas por mulheres.
Assim é O exorcismo da minha melhor amiga, romance em que a jovem Abby vê a melhor amiga, Gretchen, se tornar primeiro estranha, depois assustadora. Seria Lúcifer ou os hormônios da adolescência? Em mãos menos hábeis, a história poderia se tornar um pastiche ralo e derivativo de tantas outras que abordaram essa dúvida — tendo, claro, O exorcista como principal referência. Mas as personagens carismáticas, a narração segura e sem excessos (geralmente em terceira pessoa), e uma imaginação de fato perturbada asseguram a autonomia da obra em relação às fontes que lhe deram origem. Pena que este romance tenha se transformado em um filme tão fraco, escrito por Jenna Lamia e dirigido por Damon Thomas.
O manual das donas de casa caçadoras de vampiro vai pelo mesmo caminho (e também está sendo adaptado para o cinema). Estamos no final dos anos 1980 em Charleston, e acompanhamos Patricia Campbell em sua ordinária rotina: cobrar a lição dos filhos pré-adolescentes, escolher a gravata do marido, preparar o jantar. Sua única aventura são os encontros do clube do livro que tem com amigas, no qual leem avidamente livros de true crime. Tudo muda quando um sujeito misterioso chega à cidade. E tudo muda ainda mais quando Patricia o convida para sua casa.
Repito: a premissa é surrada, mas Hendrix tem consciência disso — até quer isso. Porque não pretende reinventar o horror, e sim revisitar os tropos do gênero numa perspectiva que extrai sua força justamente do descompromisso e da falta de pretensões. Autor de Paperbacks from hell, um premiado estudo sobre livros de horror dos anos 1970 e 1980, Grady Hendrix está do nosso lado como um apaixonado pelo gênero. E é desse ponto que nos conta suas histórias, cheias de piscadelas e referências escondidas.
O manual… tem mais pontos frágeis do que outros livros do autor. Há personagens em excesso, às vezes a história anda de lado e existe uma dimensão sociológica relacionada ao desaparecimento de crianças negras que soa um tanto fortuita, descuidada. Ainda assim, a magia está lá. Patricia é uma protagonista carismática, James Harris é um vilão sedutor e perigoso, e as cenas de horror são impressionantes. Para além disso, o perfume nostálgico está por todos os lados.
Também como apaixonados pelo gênero, costumamos percorrer um mesmo caminho quando lemos os livros de Grady Hendrix. De início, não duvidamos de que estamos no plano da paródia e da homenagem. Mas conforme as histórias progridem, notamos a personalidade própria que adquirem. Porque seu autor sabe muito bem que brincadeira tem hora. Ainda mais quando há monstros à espreita.