ANUNCIE AQUI
Uma viagem de 30 minutos de barco deixa os visitantes de Manaus (AM) no píer do Museu do Seringal Vila Paraíso, que fica no Igarapé São João, área rural da capital do Amazonas. O passeio promete uma imersão histórica no ciclo da borracha: as instalações reproduzem um seringal que realmente existiu em Humaitá, cidade a 675 km de Manaus.
Um dos guias é Manoel Souza, mais conhecido como Seu Jaime. Aos 84 anos, o ex-seringueiro é funcionário administrativo do museu, e conta a história do ciclo da borracha em primeira pessoa. Jaime trabalhou na extração da borracha por 40 anos em um seringal no Acre, em um regime de servidão, antes de partir com a família para Manaus.
Desde 2012 Jaime não só trabalha como também mora no Museu do Seringal. A visita guiada pela Casa do Seringalista fica restrita ao primeiro andar. Afinal, subindo as escadas, está o quarto de Jaime – justamente onde seriam os aposentos do antigo dono do seringal. “Eu moro na casa do coronel. Eu era escravo, mas hoje o coronel sou eu”, brinca, em entrevista à GALILEU.
Jaime representa a terceira geração de uma família de seringueiros, e começou a extrair látex aos oito anos de idade em Porto Acre, município localizado a 61 km da capital acreana, Rio Branco. O museu hoje traz lembranças de seus tempos na colocação – nome dado à área de mata demarcada para extração do látex. “Eu adoro trabalhar lá porque estou no meio da selva. O trabalho também conta, mas o mais importante para mim é a selva".
“A Selva” é também o nome do filme de 2002 que motivou a criação do cenário do seringal onde está o museu. O espaço foi doado no mesmo ano para a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Amazonas, em retorno ao apoio que o governo do estado deu à produção. Entre os ambientes retratados estão a casa do seringalista, com luxo e pompa, que contrasta com a casa do seringueiro: simples, elevada a quatro metros do chão e sem paredes – uma forma de prevenir os moradores contra ataques de onça.
Os visitantes podem conhecer ainda a casa de aviamento, uma réplica do armazém onde os seringueiros trocavam látex por mercadorias de subsistência como café e açúcar. As mercadorias eram vendidas pelo patrão a preços exorbitantes que criavam um ambiente de servidão, reconhecido apenas a partir dos anos 1970 com a atuação do seringueiro e ativista Chico Mendes, descrito por Jaime como “santo padroeiro dos seringueiros".
A história do ex-seringueiro é rica desde o nome. Manoel foi a escolha no momento do batismo, e Jaime, pelo qual é conhecido, é o nome que recebeu de sua mãe no nascimento. Ainda bebê, Jaime ficou doente e os pais tinham medo de que morresse sem ser batizado, já que a visita de um padre só viria dentro de alguns meses. Uma benzedeira se encarregou do batismo, mas disse que era preciso escolher um nome associado ao sagrado. Daí veio a escolha por Manoel – ou "Deus está conosco", em hebraico.
A seguir, Jaime conta os percalços de seus anos na extração da borracha, que envolvia caminhadas de 30 quilômetros por dia, começava ainda de madrugada, e era marcada por uma rotina solitária na selva. O ex-seringueiro reflete ainda sobre a importância da preservação da história da extração do “ouro branco" no Brasil.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_fde5cd494fb04473a83fa5fd57ad4542/internal_photos/bs/2025/h/r/4Rn7JkTFaGyMsp8zdgNg/whatsapp-image-2025-08-13-at-13.13.22.jpeg)
O senhor foi seringueiro durante o segundo ciclo da borracha, mas esse ofício já estava na sua família há duas gerações. Qual a relação de seus parentes com a extração da borracha?
Fui seringueiro por 40 anos; isso vem do tronco velho da minha família. Meu pai foi seringueiro. Meu avô foi seringueiro. Naquele tempo, no meio da mata, não existia outro tipo de trabalho. Meu avô veio do Nordeste, da cidade de Cariri, no Ceará, para trabalhar na extração da borracha no Acre. Quando chegou, foi para uma colocação próxima a uma aldeia indígena, em Porto Acre. Meu pai chegou lá criança. Cresceu, virou seringueiro e se casou com minha mãe – que era índia da tribo Jamamadi.
E o senhor começou no ofício com quantos anos?
Lá no meio das matas não tinha colégio, não tinha profissão pra gente estudar. Meu pai me botou para trabalhar com oito anos de idade. Só que eu não ia só, acompanhava o meu irmão ou meu pai para aprender o corte da seringueira – é um serviço grosseiro, um serviço brutal. Mas com dez anos eu assumi a responsabilidade de um seringueiro de verdade: entrava no meio da mata, às duas horas da madrugada, sozinho com Deus. Dez anos de idade é uma criança ainda. Não tinha outro trabalho, não tinha como estudar. Então, tinha que enfrentar.
Por que era necessário começar o serviço ainda de madrugada?
Um dos motivos para sair de madrugada é que o percurso é muito longo; as seringueiras não ficam tão perto umas das outras. Andava em torno de 30 quilômetros por dia. Outro ponto é que, na frieza da noite, o látex desce todinho da árvore e facilita a retirada do leite. E além disso o coronel já estimava quantos quilos de borracha você podia entregar. Se você não conseguisse trazer a quantidade certa de borracha na data combinada, ele reduzia a quantidade de mantimentos que você podia comprar no barracão dele. Se você quisesse pegar um quilo de café, ele só vendia meio, por exemplo. O seringueiro era uma classe de trabalhador escravo, que trabalhava 18 horas por dia. Eu fui escravo de seringais.
O senhor pode descrever como era sua rotina em um seringal? Como era o dia a dia de um seringueiro?
O seringueiro não pode parar, tem que cortar seringueiras todo dia. Para que isso seja possível, é preciso ter três estradas, com seringueiras diferentes, porque uma árvore que é cortada todo dia pode morrer. Tinha uma estrada para segunda e quinta-feira, outra estrada para terça e sexta-feira e uma terceira para quarta-feira e sábado. O seringueiro saía de madrugada cortando as seringueiras e embutindo as tigelinhas para colher o látex do corte; eram cerca de 150 tigelinhas por dia. Por volta de 10h30 da manhã terminava esse processo. Aí, o seringueiro pegava o balde para fazer a colheita e despeja o conteúdo das tigelas nesse balde, que ele levava nas costas. Essa parte terminava por volta de 15h ou 16h. Então, começava a defumação: o seringueiro usava fumaça para transformar o leite em borracha bruta. É um processo que poderia durar até umas 19h, dependendo de quantos litros de látex eram extraídos.
O seringueiro tinha, então, apenas o domingo para descansar?
Domingo era dia de caçar. Nem sempre era possível caçar durante a semana. Então, o seringueiro precisava sair no domingo para caçar. Ali era meio da mata, sem rio e sem peixe: o alimento era carne selvagem. Todo seringueiro andava armado com espingarda para caça e para defesa: as onças comeram muito seringueiros. Na caça, onça vermelha a gente comia, mas a pintada não serve para comer. Comíamos de tudo: porco, veado, cutia. O macaco é o melhor de todos, porque é uma carne que já vem temperada – ele é criado comendo frutas. Então, a carne é muito saborosa. Comia muita carne selvagem.
No Museu do Seringal, é possível ver uma representação de uma casa de seringueiro. Para quem não conhece o Museu, poderia descrever como era essa moradia?
A nossa casa era uma casinha pequenininha, e o tamanho dependia da quantidade de caminhos que era possível abrir na colocação [local para extração de borracha]. Cada seringueiro precisava de três caminhos. Então, se uma colocação tivesse nove estradas, podiam ficar três pessoas, por exemplo. Quando sozinho, a gente fazia uma casinha de três por quatro metros, uma casa toda aberta e suspensa em quatro metros de altura. Quando ele ia dormir, ele derrubava a escada lá embaixo que era para a onça não conseguir subir. A casa não tem parede para que o seringueiro tenha visão para todo lado. De onde a onça vem, ele está vendo.
E sua família, morava com o senhor na colocação?
As famílias moravam muito distantes, a horas ou até dias de viagem. O seringueiro ficava só. Eu via minha esposa uma vez por mês. Uma vez, fiquei oito meses direto na colocação sem ver uma pessoa sequer. A gente se acostumava tanto com a solidão que às vezes ficava acanhado de conversar quando voltava a ver alguém. Hoje em dia, sou mais comunicativo porque já trabalho há 25 anos com cultura. Mas, no começo, queria falar e não podia, não conseguia.
O Museu conta ainda com a representação de outros espaços, entre eles a casa do seringalista, que tinha uma vida de luxo e conforto mesmo no meio da selva amazônica. Como era a relação do seringueiro com o patrão?
O seringueiro era um tipo de escravo: ele não trabalhava para ganhar dinheiro, trabalhava para trocar por alimentação na venda do patrão. A gente era proibido de saber por quanto o patrão vendia o quilo de borracha; ele nos pagava o quanto queria pelo trabalho e cobrava o quanto queria pelo que nos vendia. A maioria dos seringueiros eram analfabetos: a gente não sabia o que eles estavam anotando, quais eram os valores. E ninguém podia questionar nada. O seringalista era coronel, era delegado, era promotor: ele era tudo. O coronel dominava de 100 a 200 homens e ninguém falava nada. Quem reclamava era amarrado no tronco no sol, passava dois ou três dias amarrado, tomava lapada do carrasco. Todo mundo tinha medo.
O senhor deixou a vida de seringueiro na década de 1980, em meio à luta do ativista Chico Mendes pelos direitos dessa classe de trabalhadores. Como isso aconteceu?
Chico Mendes é o santo dos seringueiros. Formou um sindicato para mostrar a eles quais eram seus direitos, orientou esses trabalhadores a exigir prestação de contas do patrão. Quem queria, já podia sair. Antes não era possível, tinha que morrer trabalhando. Desde criança até ficar velhinho, só trabalhando. Após 40 anos, eu fui um dos que conseguiu sair.
O que o senhor fez ao sair do seringal? Como reconstruiu sua vida?
Peguei minha família, joguei dentro do navio e vim aqui para Manaus. Sem nunca ter andado em Manaus, sem nem saber ler, sem nada, sem o dinheiro – só das passagens com a venda de porco, galinha, essas coisas. Cheguei aqui, quase que eu morro. Vim sofrer. Vi minha família pedindo um pão para comer e eu não tinha dinheiro para comprar. Morei de favor, fiz reformas, fui carregador na beira do rio. Graças a Deus depois que comecei a trabalhar não faltou serviço, e a vida foi melhorando. Conheci um senhor que trabalhava no governo, fiz roçado para ele. Ele me levou para trabalhar na Secretaria de Cultura: ajudei a montar uma exposição no Palácio do Rio Negro sobre os seringais: construí [réplicas] de casa de seringueiro, casa de farinha, maloca de índio. Ganhei a confiança dos homens e fiquei por lá. Hoje trabalho no Museu do Seringal.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_fde5cd494fb04473a83fa5fd57ad4542/internal_photos/bs/2025/o/q/q70CoQQBAjiQQxwVpt4A/whatsapp-image-2025-08-13-at-13.13.21-2-.jpeg)
O Museu do Seringal funciona como uma imersão no ciclo da borracha, onde os visitantes podem ter uma aula prática sobre como era a vida e o trabalho nesse período. Para o senhor, qual a importância disso?
As pessoas escutam falar sobre borracha, mas não sabem do sofrimento de quem trabalhou para fazer essa borracha. Foi uma das matérias-primas que mais rendeu no nosso Brasil. Na época, foi uma grande fonte de dinheiro, tão poderosa que passou a ser chamada de ouro branco. Mas só quem ganhou dinheiro foram os coronéis, os donos das propriedades. Os seringueiros só trabalhavam, mas não ganhavam nada. Hoje em dia poucas coisas são feitas de borracha. Então, nossos bisnetos podem crescer e nem mais saber do que foi a borracha e como ela foi importante para o nosso Brasil. Não podemos deixar essa história morrer.
E como foi sua mudança para o Museu do Seringal? O senhor não só trabalha como também vive no museu, que fica a 30 minutos de Manaus. Como foi a mudança para lá?
Cheguei lá em 2012, e minha função é assistente administrativo, mas faço de tudo – e também sou guia. Quando me convidaram para esse trabalho, eu não queria ir. Mas quando fui conhecer, me apaixonei pelo museu. Eu adoro trabalhar lá porque estou no meio da selva. O trabalho também conta, mas o mais importante para mim é a selva. Eu me adaptei de tal jeito a ela que não perco minha origem do interior. Todo sábado de manhã eu venho pra casa em Manaus e segunda-feira eu volto para o museu. Minha esposa já é falecida, e lá no museu eu moro só. Moro na casa do coronel. Eu era escravo, mas hoje o coronel sou eu.