Como um experimento criado para ensinar alunos levou ao prêmio Nobel de Química 2025

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Quando o químico Richard Robson pediu à oficina da Universidade de Melbourne, na Austrália, que preparasse hastes e esferas de madeira para montar modelos de moléculas com seus alunos em 1974, ninguém poderia imaginar que aquele experimento didático daria novos caminhos para a química moderna. Além de ajudar diversas turmas a entenderem melhor as ligações entre os átomos, a engenhoca permitiu o desenvolvimento das revolucionárias estruturas metal-orgânicas (MOFs).

Cinco décadas e muitos estudos depois, esses materiais com cavidades internas capazes de capturar, armazenar e liberar moléculas de forma controlada levaram Robson, o japonês Susumu Kitagawa e o jordaniano-americano Omar Yaghi a serem laureados com o Prêmio Nobel de Química de 2025. Segundo comunicado oficial do Comitê do Nobel, publicado nesta quarta-feira (8), as construções criadas pelos três “abriram uma nova fronteira na arquitetura molecular”.

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Apesar do nome parecer complicado, esses materiais são surpreendentemente simples e têm potencial para mudar o mundo. "Imagine um material capaz de capturar CO₂ do ar, purificar água, remover poluentes ou catalisar reações químicas — tudo isso de forma controlada e eficiente. Pois esses materiais já existem, e são justamente os MOFs, que combinam íons metálicos e moléculas orgânicas para formar estruturas cristalinas altamente porosas, como verdadeiras 'esponjas moleculares'”, aponta Ivo Teixeira, químico e pesquisador na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em unidade da Embrapii (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), em nota enviada à imprensa.

Insight nascido em sala de aula

Curiosamente, a ideia das MOFs surgiu de um detalhe técnico. Ao preparar os modelos de madeira, Robson percebeu que o posicionamento preciso dos furos (as “ligações químicas”) carregava informações fundamentais sobre a forma da molécula. “As estruturas surgiam naturalmente corretas”, relatou mais tarde.

A partir daí, ele se perguntou: e se as próprias propriedades químicas dos átomos pudessem guiar a construção de estruturas maiores, de modo semelhante ao que ocorria com seus modelos de madeira? Tal reflexão levou Robson a experimentar com íons metálicos e moléculas orgânicas de múltiplos “braços”, capazes de se conectar em formas regulares.

Em 1989, o pesquisador publicou o seu primeiro artigo descrevendo um cristal poroso e estável — uma rede tridimensional formada por cobre e compostos orgânicos. Era o embrião do que mais tarde viria a se chamar de estrutura metal-orgânica.

Por mais que muitos de seus colegas vissem essas construções como meras curiosidades frágeis e sem aplicação, Susumu Kitagawa decidiu adotar uma filosofia oposta, explorando a hipótese. Em 1992, ele criou sua primeira rede porosa bidimensional e, cinco anos depois, desenvolveu uma versão tridimensional capaz de absorver e liberar gases como oxigênio e metano sem perder a forma.

Kitagawa também introduziu uma ideia central para o avanço da área: os MOFs poderiam ser materiais flexíveis, diferentes das zeólitas — estruturas porosas rígidas usadas na indústria. Essa maleabilidade permitiria aplicações muito mais diversas, de armazenamento de gases a transporte de fármacos.

 Johan Jarnestad/Academia Real Sueca de Ciências Em 1997, Kitagawa conseguiu criar uma estrutura metal-orgânica interseccionada por canais abertos. Estes podiam ser preenchidos com diferentes tipos de gás. O material podia liberar esses gases sem que sua estrutura fosse afetada — Foto: Johan Jarnestad/Academia Real Sueca de Ciências

Nos Estados Unidos, Omar Yaghi deu o salto final. Inspirado por uma infância modesta em Amã, na Jordânia, e fascinado desde cedo por livros de química, ele sonhava em “projetar moléculas como se fossem construções de Lego”. Em 1995, cunhou o termo “metal-organic framework” (MOF) e, quatro anos depois, apresentou o célebre MOF-5, uma estrutura cúbica tão estável e espaçosa que poucos gramas contêm uma área interna equivalente a um campo de futebol.

A equipe de Yaghi demonstrou que os MOFs podiam ser projetados com precisão quase arquitetônica, ajustando-se tamanho, forma e funcionalidade das cavidades. Em 2017, a descoberta ganhou destaque mundial ao se usar um desses materiais para coletar água potável do ar do deserto do Arizona.

Do laboratório à vida cotidiana

Atualmente, pesquisadores e empresas em todo o mundo vêm explorando o potencial das MOFs em diversas frentes. Na indústria, certas estruturas são utilizadas para capturar dióxido de carbono diretamente de fábricas e usinas, contribuindo para a redução das emissões de gases de efeito estufa.

“Esses materiais têm grande potencial no enfrentamento do aquecimento global. Eles são sólidos com áreas superficiais enormes, até superiores a um campo de futebol, mas concentrada em uma quantidade de material da ordem de uma colher de chá”, explica Monique Deon, química e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) apoiada pelo Instituto Serrapilheira, em comunicado à imprensa. “Quantidades muito pequenas de MOFs podem remover quantidades enormes de CO₂ da atmosfera e mitigar efeitos de mudanças climáticas.”

Há também MOFs projetadas para remover poluentes e substâncias tóxicas. É o caso dos PFAS (conhecidos como “poluentes eternos”), da água, e para conter ou decompor gases perigosos usados na fabricação de semicondutores. Na agricultura e na biotecnologia, algumas dessas construções são usadas para controlar o amadurecimento de frutas, retendo o gás etileno que acelera o processo. Outras servem como “cápsulas moleculares” para transportar medicamentos ou enzimas que decompõem antibióticos residuais no ambiente.

 Johan Jarnestad/Academia Real Sueca de Ciências Exemplos de MOFs. O MOF-303 pode capturar vapor d'água do ar do deserto durante a noite. O MIL-101 tem sido usado para catalisar a decomposição de petróleo bruto e antibióticos em águas poluídas. O UiO-67 pode absorver PFAS da água, o que o torna um material promissor para tratamento de água e remoção de poluentes. O ZIF-8 tem sido usado experimentalmente para extrair elementos de terras raras de águas residuais. O CALF-20 tem uma capacidade excepcional de absorver dióxido de carbono. O NU-1501 foi otimizado para armazenar e liberar hidrogênio à pressão normal — Foto: Johan Jarnestad/Academia Real Sueca de Ciências

E o avanço não para por aí: novas gerações de MOFs estão sendo testadas para armazenar hidrogênio e metano, possibilitando soluções mais seguras e eficientes para o transporte e o uso de combustíveis limpos. Versões inspiradas na flexibilidade descrita por Kitagawa funcionam como materiais “respiráveis”, que se expandem e contraem conforme absorvem ou liberam moléculas — como um pulmão artificial em escala molecular.

Aquilo que começou com bolas de madeira em uma aula universitária evoluiu para um campo de pesquisa que une ciência fundamental e impacto ambiental direto. Dos desertos áridos às indústrias químicas, das frutas frescas às futuras fontes de energia, as estruturas metal-orgânicas provam que a química pode ser, ao mesmo tempo, arte, arquitetura e instrumento de transformação global.

“O trabalho premiado é fascinante porque está na interseção entre a química inorgânica, a química orgânica e a ciência dos materiais, mostrando o poder da colaboração entre áreas. Essa visão permitiu transformar o design de materiais em uma ciência racional, abrindo caminho para aplicações em energia limpa, meio ambiente e armazenamento de gases”, avalia Teixeira.

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