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Roupas no varal. Foi isso que denunciou o último esconderijo do líder e fundador da organização terrorista Al-Qaeda, Osama bin Laden, um dos homens mais procurados do século 21. Entre os diveros atentados feitos pela organização estão os do 11 de setembro de 2001, quando quatro aviões comerciais sequestrados atingiram as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e o Pentágono, em Washington, deixando quase três mil mortos e mudando para sempre a política de segurança dos Estados Unidos.
Após quase dez anos foragido, bin Laden foi encontrado graças a um detalhe doméstico. Em Abbottabad, no Paquistão, a casa tinha movimento de pessoas e, ao que tudo indicava, abrigava várias crianças. Só que as roupas infantis nunca apareciam estendidas. O padrão não fechava. As analistas da CIA que trabalhavam na operação estranharam a ausência, e passaram a encarar a cena corriqueira como uma pista em potencial.
Esse olhar apurado não foi obra do acaso. Ao longo de décadas, foram sobretudo as mulheres que ocuparam funções da CIA vistas como secundárias – secretárias, analistas de “rotina”, tradutoras. E, por isso mesmo, desenvolveram a capacidade de encontrar detalhes com atenção.
Muito antes do 11 de setembro, aliás, essas analistas já alertavam para a expansão da Al-Qaeda e a possibilidade de ataques em solo americano. Mas suas observações foram deixadas de lado. Não foi a primeira vez em que a contribuição feminina foi ignorada em momentos decisivos.
“Sempre me intrigou o fato de termos esquecido disso depois da Segunda Guerra Mundial”, afirma Liza Mundy, autora de A história das espiãs da CIA, lançado recentemente no Brasil pela Amarilys Editora. A escritora também assina Code girls, livro ainda sem tradução para o português sobre as milhares de mulheres recrutadas durante a Segunda Guerra Mundial para quebrar códigos secretos do Eixo. Ela afirma que, embora tenham sido cruciais para a vitória dos Aliados, no pós-guerra parece ter havido um ”desejo cultural e oficial de empurrar mulheres e pessoas negras para fora do mercado de trabalho”.
Além de Mundy, a ex-agente da CIA Christina Hillsberg acaba de lançar nos Estados Unidos Agents of change: the Women who transformed the CIA (Agentes da mudança: as mulheres que transformaram a CIA, em tradução livre, ainda sem edição no Brasil). Juntas, as duas obras ajudam a compreender como funcionárias antes invisíveis se tornaram parte central de operações decisivas. E por que suas trajetórias ainda dizem muito sobre o atual momento da espionagem e sobre o lugar das mulheres em instituições de poder.
Quando a CIA foi criada, em 1947, o lugar reservado às mulheres era nos bastidores, sem acesso ao prestígio das operações de campo ou às posições de comando. Esse enquadramento refletia um movimento mais amplo do pós-guerra, quando instituições como a própria CIA, a Agência de Segurança Nacional (NSA) e empresas do nascente Vale do Silício estavam sendo construídas em clima de modernização – mas acompanhadas de um esforço deliberado para devolver mulheres e pessoas negras ao espaço doméstico.
Mesmo recrutas altamente qualificadas eram desviadas para o chamado “canal feminino”, um trilho que as levava a cargos administrativos ou a um “curso curto” de treinamento, que as mantinha oficialmente sub qualificadas para atuar como oficiais de caso. Em 1968, documentos internos chegaram a classificar a contratação de mulheres em idade fértil como desperdício de investimento. Até mesmo Virginia Hall – considerada a mais condecorada espiã da história por sua atuação contra os nazistas – foi relegada a um escritório durante 15 anos após a guerra.
Mas foi nesse terreno que elas encontraram espaço para atuar. Treinadas para organizar informações, cruzar dados e notar inconsistências, transformaram a “rotina” em um campo de influência que se revelaria estratégico em momentos críticos. Um dos episódios mais emblemáticos desse protagonismo velado é o do trio Jeanne Vertefeuille, Sandy Grimes e Diana Worthen, que desmascarou o espião Aldrich Ames, responsável por entregar segredos americanos à União Soviética. A investigação começou quando notaram sinais de riqueza incompatíveis com o salário de funcionário público, como as cortinas caras da nova casa. Somados a meses de cruzamento de dados financeiros e de viagens, esses detalhes levaram a provas irrefutáveis da traição de Ames.
Funcionários da CIA na década de 1980 — Foto: Wikimedia Commons Nos livros, Mundy e Hillsberg mostram que a contribuição feminina não era pontual, mas fundamental – e que, ironicamente, muitas vezes a própria condição de serem menosprezadas se transformava em vantagem operacional. “Em muitos casos, as mulheres são mais capazes do que seus pares masculinos, porque nós conseguimos nos aproveitar do fato de sermos subestimadas. Então, a gente pode se misturar a uma variedade de situações”, afirma Hillsberg. “E é assim que você deve conduzir a espionagem, você não quer ser notada. Nós conseguimos usar esses estereótipos e misoginia contra eles mesmos.”
Exemplos de várias gerações mostram como essa tática funcionava. Heidi August, que iniciou a carreira como funcionária administrativa, virou uma das primeiras chefes de estação da agência. Em sua primeira missão, recrutou outras mulheres como informantes, certa de que a frustração com o mau tratamento profissional poderia incentivá-las a cooperar. Martha “Marti” Peterson, por sua vez, se recusou a aceitar funções inferiores e, em 1975, se tornou a primeira agente secreta em Moscou. A KGB simplesmente a ignorava, por não acreditar que uma mulher pudesse atuar como espiã. Foi justamente esse preconceito que lhe permitiu realizar entregas secretas durante meses sem ser detectada.
Houve quem enfrentasse estereótipos dentro da própria agência. Janine Brookner provou seu valor ao recrutar um alvo que havia resistido a dois oficiais homens, conquistando depois a chefia de uma estação no Caribe. Mary Beth Long, alvo de piadas e insinuações sobre favores sexuais, inverteu a lógica: usou a percepção de sua feminilidade como ferramenta de convencimento e chegou ao posto de secretária assistente de Defesa, a primeira mulher confirmada pelo Senado para o cargo.
E mesmo fora da carreira de agente houve quem conduzisse verdadeiras operações: Barbara Colby, ex-esposa do diretor William Colby, percebeu que as mulheres casadas com funcionários da CIA dedicavam anos de vida à agência sem qualquer reconhecimento. Usando sua rede de contatos em Washington, articulou a aprovação de uma lei que garantiu pensão e benefícios a cônjuges de servidores públicos após o divórcio.
Quando descobriu que muitas ex-esposas ainda tinham dificuldade em acessar esses direitos, organizou um segundo movimento e levou essas mulheres até a sede da agência para que aprendessem a reivindicar o que lhes era devido. Uma operação informal, mas bem-sucedida, que mudou o destino de famílias inteiras ligadas ao serviço de inteligência americano.
Quebrando o teto de vidro
Ainda que tratadas como exceções, as trajetórias das mulheres nos serviços de espionagem pavimentaram terreno para transformações mais profundas. Isso aconteceu por meio de uma combinação de disputas internas, pressões externas e mudanças nas prioridades da própria agência.
Já nos anos 1950, um relatório encomendado pelo então diretor Allen Dulles reconhecia que as mulheres eram mantidas em posições inferiores, recebiam salários mais baixos e não ocupavam cargos executivos. Quatro décadas depois, em 1991, um estudo conhecido como Glass Ceiling Study reiterou o diagnóstico: embora representassem 40% da força de trabalho, elas ocupavam apenas 10% dos postos de liderança. Esses documentos foram ignorados por anos, mas forneceram munição para redes internas de funcionárias, que criaram conselhos e grupos de mentoria dedicados a pressionar por mudanças.
A pressão também veio pela via judicial. Em 1977, Harritte Thompson processou a agência alegando que mulheres eram promovidas mais lentamente que homens, e venceu. Em 1994, Janine Brookner abriu um processo por discriminação sexual que se somou a uma ação coletiva movida por mais de 200 oficiais. O caso terminou em 1995, com um acordo milionário em salários atrasados e aumentos, considerado o golpe mais visível contra a “rede de velhos rapazes” que dominava os bastidores da CIA.
Paralelamente, as demandas estratégicas começaram a jogar a favor das mulheres. O contraterrorismo, visto como missão de segunda linha e ocupado em grande parte por analistas femininas, ganhou centralidade após os atentados de 11 de setembro. Experiências antes desvalorizadas se transformaram em credenciais, e a busca por falantes de árabe ou oficiais dispostos a servir em zonas de guerra abriu novos caminhos de ascensão. Missões de alto risco, antes restritas aos homens, passaram a fazer parte também da carreira feminina, estabelecendo condições de igualdade desde o início.
Esse processo acumulado só se tornou plenamente visível no século 21. Em 2018, Gina Haspel foi nomeada diretora da CIA, a primeira mulher a ocupar o cargo. No mesmo ano, Elizabeth Kimber assumiu a vice-diretoria de Operações, responsável por todas as ações clandestinas globais. Três anos depois, pela primeira vez, todas as principais diretorias da agência – Operações, Análise e Ciência e Tecnologia – estavam sob liderança feminina.
“Acho que de certa forma as mulheres da CIA eram únicas e unicamente qualificadas para descobrir como lutar contra o sistema”, afirma Mundy. “E elas estavam lutando contra segredos institucionais que tornavam tudo mais difícil.”
Muitas vezes relegadas a cargos menos "nobres" devido ao gênero, mulheres tiveram protagonismo em momentos-chave da história da CIA — Foto: Wikimedia Commons Mas isso não necessariamente significou a criação de uma rede solidária ou cooperativa entre as mulheres. Tanto Mundy quanto Hillsberg fazem questão de desmontar a ideia de que haveria uma irmandade feminina dentro da CIA. “Havia essa tendência de as mulheres alcançarem níveis mais altos. Aí, esquecerem de mandar o elevador de volta para baixo”, explica Hillsberg.
Também não se trata de pintar as mulheres como moralmente superiores, como destaca Mundy. “A CIA é muito controversa, e as mulheres não são melhores que os homens do ponto de vista moral”, diz. “Muitas estavam cientes e participaram do lado sombrio do negócio.”
Outro mito recorrente é o da espionagem como um jogo de glamour e ação no estilo James Bond. As trajetórias narradas nos livros mostram o contrário: a eficácia vinha de tarefas minuciosas, muitas vezes invisíveis, e da capacidade de transformar em vantagem justamente o fato de não serem levadas a sério. A rotina que sustentava a agência não tinha nada de cinematográfica – era feita de relatórios, cruzamento de dados, observação paciente e, não raro, isolamento. A visão romantizada da atividade, inclusive, dificulta a inclusão porque naturaliza o papel secundário das mulheres.
No presente, retrocessos continuam rondando a agência, seja em escândalos de assédio sexual, seja nas pressões políticas que ameaçam mecanismos de responsabilização conquistados a duras penas. Mundy avalia que os Estados Unidos vivem hoje um revés nos esforços de inclusão, e Hillsberg acrescenta que a segurança de qualquer país se enfraquece sem diversidade.
“Você precisa construir relações com pessoas com culturas e experiências diferentes. Se não tivermos a capacidade de entender o ponto de vista de outra pessoa, não iremos muito longe”, diz. Ela lembra de uma descrição antiga da CIA como “male, pale and Yale” — dominada por homens brancos formados em universidades da elite americana, como a Universidade de Yale –, um perfil que, segundo ela, não tem mais lugar no mundo de hoje.
Os relatos não falam apenas das mulheres da CIA, mas de como as instituições lidam – e muitas vezes resistem – à inclusão. Para Mundy e Hillsberg, em qualquer ambiente hierárquico, mulheres ainda disputam espaço em condições de desigualdade, obrigadas a navegar por estruturas que não foram feitas para recebê-las. “Esse arco de tentar fazer sua voz ser ouvida – e as consequências de quando uma instituição não é inclusiva e não escuta seus membros mais talentosos, capacitados e dedicados – é uma mensagem universal”, conclui Mundy.

há 16 horas
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