O que é biologia quântica – e como ela pode dar novas perspectivas à ciência

há 3 semanas 11
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Para muita gente, o termo “quântico” é sinônimo de esoterismo, ficção científica ou papo de coaching nas redes sociais. Outros associam a palavra a fórmulas indecifráveis, buracos negros e mistérios do espaço-tempo. Na física, porém, “quântico” tem um sentido muito mais concreto: designa as leis que regem o mundo do muito pequeno – o comportamento de átomos e partículas elementares – em contraste com a física clássica, que explica por que as coisas caem para baixo ou o movimento dos planetas.

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Durante muito tempo, acreditava-se que a biologia, por ser complexa e “caótica”, não tinha nada a ver com o mundo quântico. Hoje essa visão mudou. Pesquisadores já mostraram que fenômenos como a fotossíntese ou a ação de enzimas dependem de mecanismos quânticos para funcionar, e novas hipóteses sugerem que a própria orientação de aves migratórias pode estar ligada a esses efeitos invisíveis.

Esse campo emergente é chamado de biologia quântica, e investiga como leis que regem o comportamento de partículas minúsculas podem se manifestar em organismos vivos, em escalas muito maiores. A hipótese é de que a natureza, ao longo de bilhões de anos, tenha encontrado formas engenhosas de usar propriedades quânticas para otimizar processos vitais.

“Os físicos precisam interagir com a possibilidade muito real de que a natureza teve muito tempo para testar um monte de coisas”, afirma a engenheira quântica Clarice Aiello, diretora científica do Quantum Biology Institute e professora da Escola de Biologia Quântica.

Pioneira na área, Aiello busca comprovar – ou refutar – até onde a mecânica quântica está por trás de funções biológicas essenciais, abrindo caminho para novas formas de entender a vida e até para tecnologias médicas do futuro. “Se esses fenômenos estiverem acontecendo, a gente ganha um botão de controle extra”, diz. “Se a gente conseguir entender o manual do usuário, que tipo de campo magnético faz o quê com a biologia, a ganhamos um outro jeito de atuar nas células.”

A seguir, ela fala sobre os principais exemplos de fenômenos biológicos que dependem da mecânica quântica, aponta as maiores apostas de pesquisa na área e explica quais são as possibilidades que ela permite.

Clarice Aiello é engenheira quântica e estuda como a física quântica influencia a biologia em nanoescala. Atualmente, é diretora científica do Quantum Biology Institute e professora da Escola de Biologia Quântica.
 Divulgação A engenheira quântica Clarice Aiello — Foto: Divulgação

Como você define biologia quântica?

Biologia quântica é a área da ciência que investiga o quanto a biologia precisa das leis da física quântica para funcionar a nível macroscópico. As leis da mecânica quântica são as leis que regem o mundo do “muito pequeno” e do “muito rápido”, o que acontece quando você tem só alguns átomos, algumas moléculas. E, na biologia, há evidências de que ocorre o que se chama de scale shift: quando as consequências desse mundo se refletem em escalas de tempo mais longas, e em escalas macroscópicas. É isso que a gente tenta provar ou refutar no laboratório.

Quais são os exemplos mais claros hoje de fenômenos biológicos que dependem da física quântica?

Há vários fenômenos propostos que cientistas sabem, por meio de evidência parcial, que precisam ter mecânica quântica para funcionar. Por exemplo, em tubo de ensaio e em temperatura ambiente, não há dúvida de que a ação de enzimas para acelerar certas reações químicas (catálise) só ocorre porque existe tunelamento, tanto de elétrons como de prótons. Tunelamento é um processo pelo qual coisas que são bem pequenas podem ir de um lugar até o outro sem necessariamente ter a energia suficiente para fazer isso. É um processo meramente quântico que, por exemplo, faz o seu computador clássico funcionar – o transistor (componente elétrico) funciona por causa disso. E há comprovação – em tubo de ensaio – de que as enzimas só funcionam por causa desse mesmo tipo de fenômeno.

Tem a fotossíntese também, um fenômeno que é supereficiente. Nos primeiros passos da fotossíntese, o fóton é absorvido pela planta e transformado em energia com a ajuda de um objeto quântico chamado exciton. É um processo que corresponde aos mesmos primeiros passos de uma célula solar artificial – mas a fotossíntese dá de mil a zero. E uma das hipóteses do porquê essa captação e transporte de energia ser melhor na fotossíntese tem a ver com um conceito de biologia quântica chamado Noise-Assisted Process. Nele, o éxciton consegue trocar pequenas quantidades de energia com as vibrações do meio – que, normalmente, seriam vistas como “ruído” prejudicial –, o que, paradoxalmente, torna o tunelamento mais eficiente.

Outro fenômeno, um pouco mais complexo, é o da superposição. Ele acontece quando um objeto quântico pode ter duas propriedades ao mesmo tempo, que classicamente não fariam sentido. Por exemplo, um elétron pode estar numa superposição de duas posições ao mesmo tempo; ou – meu objeto de estudo – de estados de spin (propriedade que rege como os objetos quânticos interagem com campos magnéticos).

E como organizar o estudo desses diferentes conceitos de biologia quântica?

Eu costumo dividir em cinco níveis. No primeiro e mais “trivial”, tudo é quântico porque somos feitos de átomos e ligações químicas. No segundo, aparecem fenômenos típicos da física quântica que só acontecem em escalas muito pequenas, e com partículas com pouquíssima massa, como o tunelamento – quando partículas minúsculas conseguem atravessar barreiras sem a energia que, pela física comum, seria necessária. No terceiro, estão processos como a fotossíntese, que funcionam melhor porque os objetos quânticos conseguem pegar ou ceder um pouquinho de energia das vibrações do ambiente, o que facilita o transporte de elétrons e até, talvez, o reconhecimento entre moléculas. No quarto nível, aparece a superposição, que pode explicar a sensibilidade de alguns organismos a campos magnéticos; isso é o que um físico de carteirinha chamaria de “sensor quântico”. E, no quinto, há teorias ainda especulativas de que células poderiam manter estados de emaranhamento quântico e agir como minicomputadores quânticos. Isso ainda não foi provado, mas é uma linha de pesquisa.

O que motivou sua transição da engenharia elétrica para a biologia quântica?

Fiz meu pós-doutorado em um departamento de química, onde descobri que há décadas os químicos sabem que algumas proteínas em solução, em temperatura ambiente, interagem com o campo magnético também se utilizando da superposição de elétrons – como sensores quânticos produzidos pela natureza. E existe uma hipótese, com muita evidência parcial corroborando, de que os pássaros, quando migram orientados pelo campo magnético da Terra, usam proteínas dentro das células como verdadeiros sensores quânticos.

Atualmente, em nosso laboratório, tentamos provar ou refutar que proteínas dentro de uma única célula conseguem carregar esse efeito quântico dentro delas por tempo suficiente. Só muito depois vamos tentar entender como que isso vai de uma célula a muitas células, ao sistema nervoso, e como vira o comportamento do pássaro. A gente está muito, muito atrás ainda. Precisamos fazer experimentos fundamentais para provar ou refutar se o que está acontecendo no pássaro é realmente explicado por essa hipótese.

O que os físicos têm a dizer sobre a biologia quântica?

Alguns físicos “de carteirinha” não chamariam os níveis 1 a 3 de realmente quânticos. Afinal, o funcionamento de um computador, um laptop normal, não é quântico. Computação quântica é outra coisa. Os físicos ainda acham que não existe caráter quântico em temperatura ambiente num ambiente desorganizado. Mas existe, e sem sombra de dúvida, em tubo de ensaio. Como outro exemplo, há sensores quânticos muito bem estabelecidos, compostos por um elétron dentro de um diamante, para medir campo magnéticos fracos. Estes funcionam até dentro de células, para medir parâmetros clássicos da biologia.

Os físicos precisam interagir com a possibilidade, que é muito real também, de que a natureza teve muito tempo para testar um monte de coisas. A humanidade chegou à mecânica quântica 200 anos depois da revolução industrial — a natureza teve dois bilhões de anos! Não acho que seja algo completamente fora de questão. Por isso, acho também que a gente pode aprender com a natureza como fazer melhores tecnologias quânticas, que funcionem em temperatura ambiente, em ambientes desorganizados.

Por que é tão relevante provar ou entender se esses fenômenos realmente podem e estão acontecendo?

Se estiverem acontecendo, a gente ganha um botão de controle extra. Se a gente conseguir entender o manual do usuário, que tipo de campo magnético faz o quê com a biologia, a gente ganha um outro jeito de atuar nas células. Hoje, a maior parte da atuação na célula se faz quimicamente. Você ingere um remédio, um xarope, um comprimido. É com coisas químicas.

Talvez, em 50 anos, você possa ter um app no seu celular em que você diz “preciso de ajuda com tratamento de ferida.” Ferida é um negócio que já se mostrou que melhora com a aplicação de campo magnético. Você vai no seu app, clica em “curar ferida”, e o seu celular produz o campo magnético necessário para fazer isso. É um outro jeito de atuar em biologia. Imagina o potencial disso para alguém que não tem acesso a um postinho de saúde, mas tem um celular na mão. Hoje em dia, isso é ficção científica; se a gente começar a pesquisar seriamente e cedo, não vai ser em meio século.

Outro exemplo tem a ver com colonização do espaço. O campo magnético da Terra é muito pequeno. Mas também já se sabe faz tempo que, se você tirar esse campo magnético, coisas estranhas acontecem. Isso não é de se espantar. Afinal, a natureza, que na minha opinião é a engenheira quântica mais bem equipada que existe, teve bilhões de anos para acomodar o campo magnético da Terra.

Mas o campo magnético de Marte, que é ainda menor que o campo magnético da Terra, faz diferença. E depois de já ter lido muito sobre efeito de campo magnético, a minha hipótese é que para organismos adultos esses efeitos são crônicos. Para organismos que estão em desenvolvimento, uma planta que está crescendo, um embrião que está em desenvolvimento, os efeitos são agudos.

Então, se você quiser colonizar Marte, se você quiser se reproduzir em Marte, fazer plantação em Marte, você vai ter que pensar no campo magnético, ou na quase ausência dele. E esse é um negócio que está completamente fora da preocupação corrente da NASA, da SpaceX.

Existem exemplos de biologia quântica sendo aplicados na prática?

Em longevidade e saúde já tem. Existem empresas – eu já falei com várias – que são sérias. Elas testam em laboratório, um pouco aleatoriamente, mas com resultados reproduzíveis, e começam a produzir tecnologias que usam o campo magnético fraco para aliviar inflamação, dor relacionada a diabetes, fechamento de feridas. Tem companhias que reduzem tamanho de tumor, de câncer de mama ou do cérebro usando campos magnéticos fracos.

Então, você vai conversar com a equipe científica dessas empresas e elas falam que não entendem direito por que funciona – mas sabem que, aparentemente, funciona. O que essas companhias fazem é pegar um pouquinho de palha e achar uma agulha, mas sem conseguir “unir os pontos” e falar “esse campo magnético vai ter esse efeito, essa frequência vai ter esse efeito”. Isso é o que a gente está tentando fazer nas nossas pesquisas: criar o “manual” de como, por exemplo, o campo magnético atua de maneira determinística.

Muita gente associa "quântico" a pseudociência. O que diferencia a biologia quântica de um discurso esotérico?

Tem muito charlatão quântico, alguns em posição de muita saliência na política científica inclusive, e isso é um desserviço à biologia quântica. Por isso tenho a minha classificação do que, para mim e para o meu instituto de pesquisa, significa biologia quântica; a minha classificação tenta justamente tirar ambiguidade e organizar um pouco o discurso. Mas tem, sim, a confusão quântica: muita gente usa “quântico” sem saber. Os físicos são chatos (eu sou física também, então posso falar!), mas, pelo menos, a maioria responsável sabe o que é quântico. Esse negócio do celular, se um dia acontecer de verdade, será uma terapia quântica. Você estará mexendo o seu “botão endógeno quântico” dentro das suas células para cumprir alguma função biológica. Como um remédio mesmo, mas, em vez de você colocar um composto químico dentro do seu corpo, você coloca um campo magnético. De novo, isso precisa ser entendido muito melhor, comprovado.

Quais você considera hoje as principais apostas de pesquisa nesse campo, no mundo?

Tem muita gente estudando a superposição por causa dos pássaros, mas eu acho que temos que ir além. Fiz uma compilação informal de 25 páginas com todos os efeitos do campo magnético fraco, para muitos tipos de células, e em organismos em todos os galhos da árvore da vida. Imagina se a gente soubesse controlar isso. Essa é uma aposta enorme, com uma influência que vai muito além dos pássaros.

Outra aposta é no reconhecimento molecular. Cortando muitos detalhes, a teoria tradicional sobre reconhecimento molecular diz que compostos se reconhecem por “chave-fechadura”. Entretanto, há evidência incompleta de que um modelo quântico de “chave-fechadura-vibração” é melhor.

Se a gente entender um pouquinho mais, e com ajuda de resultados experimentais, se essa teoria faz sentido, teríamos um meio mais racional de fazer o design, por exemplo, de medicamentos, que hoje é meio aleatório. Você testa 200 mil e dois dão certo.

E também a questão da energia solar, de usar a mecânica quântica para aprender mais sobre a eficiência da fotossíntese. Tem um monte de coisa pra ser explorada, está todo mundo começando. E o Brasil, que já perdeu tanto bonde, não pode mais perder esse. Talvez seja a hora de arriscar um pouco, pagar pra ver, porque não tem nenhum país liderando essa área ainda.

O quanto esses conceitos já são ensinados nas escolas e universidades?

Todo mundo tem que entender um pouquinho de física quântica. Todo mundo com escolaridade média tem que saber, porque a gente já vive num mundo quântico. Não é só computador quântico, biologia quântica. O computador comum só funciona por causa das leis da mecânica quântica, o GPS, a ressonância magnética, o laser pointer que você usa para brincar com o gato. Tem tanta coisa ao redor que só funciona por causa de tecnologia quântica, que saber um pouquinho de física quântica tem a ver com você entender o mundo melhor. Quando eu estava crescendo, as pessoas que aprendiam a fazer código no computador eram só aquelas que iam pra física, engenharia. Hoje tem jovens de primeira série já fazendo programa de computador. Eu espero que a mesma coisa aconteça com física quântica.

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