Mentes brilhantes: quem são os superdotados do Brasil e o que define a condição

há 2 dias 3
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Nicolle de Paula Peixoto, de 11 anos, falou suas primeiras palavras quando tinha seis meses de vida. Com quatro anos, lia e fazia contas, e aos cinco já estava completamente alfabetizada. Autodidata, aprendeu a tocar órgão e a andar de bicicleta sozinha. Preferia brincadeiras que envolviam lápis e papel, e, desde cedo, tinha uma inteligência que chamava a atenção de pessoas próximas à família.

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A jovem faz parte dos cerca de 10 milhões de brasileiros com altas habilidades/superdotação (AH/ SD). Para a estudante, a condição se manifestou na área de ciências exatas: ela foi destaque em olimpíadas escolares e ganhou projeção nacional em 2023, ao participar do quadro Pequenos Gênios, apresentado por Luciano Huck na TV Globo.

 Arquivo pessoal A superdotada Nicolle de Paula Peixoto, de 11 anos — Foto: Arquivo pessoal

A identificação como superdotada veio aos sete anos. Com essa idade, foi aprovada em um concurso para o Colégio Federal Pedro II, no Rio de Janeiro, que oferece ensino avançado. Só que, por exigência do edital, precisou ingressar em uma série anterior. A frustração foi imediata: Nicolle passou a chorar para ir à escola, já que sabia todo o conteúdo.

A mãe decidiu submetê-la ao teste de QI “WISC-IV”, no qual a jovem registrou pontuação de 144. O resultado a classificou como superdotada, e abriu as portas para integrar a Mensa Internacional, maior e mais antiga sociedade de alto QI do mundo.

Para fazer parte da organização, uma pessoa precisa ter um Quociente de Inteligência (QI) acima do percentil 98 — ou seja, superior ao de 98% da população. Considerando esses parâmetros, cerca de 2% da população global tem altas habilidades, o que equivale a 165 milhões de pessoas. Algumas estimativas sugerem que esse total pode chegar a 5%.

 Arquivo pessoal Nicolle com a família — Foto: Arquivo pessoal

O Brasil ocupa a 6ª colocação do ranking global de membros da Mensa, atrás dos Estados Unidos, das Ilhas Britânicas, Alemanha, Suécia e República Tcheca. Hoje, 6 mil brasileiros com superdotação são membros da instituição, que tem um total de 159 mil integrantes em 90 países.

Até abril deste ano, a Mensa tinha 5 mil membros no Brasil — 1,9 mil crianças e adolescentes e 3,1 mil adultos. A maior concentração estava em São Paulo, com 1.035 integrantes, seguido de Rio de Janeiro (332) e Brasília (257). A maioria (78%) são homens da geração Millenial (nascidos entre 1981 e 1996), que se declaram estudantes, engenheiros, empresários, analistas de sistemas e advogados.

“Acho que a parte mais difícil da superdotação é aceitar a individualidade”, diz Nicolle. Eu sou boa em matemática. Às vezes, as pessoas não gostam disso, porque a gente já responde rápido. Pensam que a gente se acha superior porque é inteligente. Mas, na verdade, só temos facilidade e um interesse a mais no que a gente gosta”.

 Flavia Hashimoto/Mensa Brasil Gráficos com dados de abril de 2025 fornecidos pela Mensa Brasil — Foto: Flavia Hashimoto/Mensa Brasil

Não significa, no entanto, que todas as pessoas muito inteligentes terão jornadas geniais. Prova disso é um estudo feito nos anos 1920 pelo psicólogo americano Lewis Terman. Defensor de ideias eugenistas, ele acompanhou cerca de 1.500 crianças com alto desempenho em testes de inteligência. Sua expectativa era que, na vida adulta, elas se tornassem “gênios” com produção intelectual extraordinária — algo que não se confirmou na prática.

 Flavia Hashimoto/Mensa Brasil Dados de abril de 2025 fornecidos pela Mensa Brasil — Foto: Flavia Hashimoto/Mensa Brasil

Na psicologia, a superdotação é definida como a presença de um potencial elevado em diferentes aspectos do desenvolvimento. O Ministério da Educação (MEC) lista como exemplos as áreas intelectual, de liderança, psicomotora, artística e criativa. Duas personalidades brasileiras que divulgaram sua superdotação em 2025 são exemplos que ajudam a ampliar a definição tradicional: o comediante Whindersson Nunes, conhecido por sua habilidade incomum de improvisar e criar roteiros, e a atriz Fabiana Karla, humorista e apresentadora de sucesso.

Ser superdotado, aliás, não garante alto desempenho em todas as áreas do conhecimento. O destaque costuma aparecer apenas nos campos em que a superdotação está presente. “Nas demais áreas, pode haver um desempenho igual ao das outras pessoas, ou até mesmo mais baixo”, explica a psicóloga Tatiana Nakano, pós-doutora em psicologia e coautora de livros como Altas Habilidades, Superdotação: Talentos, criatividade e potencialidades (Vetor Editora).

A superdotação pode, inclusive, aumentar o risco de burnout. Uma pesquisa com mais de 300 alunos superdotados no País de Gales mostrou que o perfeccionismo e a pressão externa elevam o estresse, favorecendo esgotamento e queda do engajamento escolar. A falta de desafios também pesa: “Tudo é muito fácil, muito chato, porque a pessoa superdotada já aprendeu aquilo [com rapidez]”, observa Nakano.

Criadora da escala de “Triagem de Indicadores de Altas Habilidades/ Superdotação (TIAH/S)”, com 42 itens para auxiliar pais e professores na identificação precoce, a especialista ressalta que não o mais comum é evitar a palavra “diagnóstico” ao falar de superdotação. Costuma-se preferir o termo “identificação”, uma vez que as altas habilidades não possuem código na CID (Classificação Internacional de Doenças).

Como identificar um superdotado

Curiosidade intensa, facilidade de aprendizagem, memória privilegiada, vocabulário avançado, alfabetização precoce e múltiplos interesses são indícios comuns. Mas, para selecionar seus membros, a Mensa Brasil aplica os próprios testes de inteligência. A sociedade também aceita laudos anteriores de seis tipos de testes psicométricos, aplicados conforme a faixa etária, desde que assinados por psicólogo registrado no Conselho Regional de Psicologia.

Até o início da década de 1980, a aptidão dos superdotados era medida quase que exclusivamente pelo QI, criado a partir da escala de inteligência desenvolvida em 1905, pelos psicólogos franceses Alfred Binet e Théodore Simon. Isso começou a mudar em 1983, quando o psicólogo americano Howard Gardner publicou o livro Frames of Mind (Estruturas da Mente), no qual introduziu a Teoria das Inteligências Múltiplas. O modelo ampliou a noção de inteligência, apontando que ela existe em sete dimensões distintas: linguística, musical, lógico-matemática, espacial, cinestésica, interpessoal e intrapessoal.

Hoje, o conceito de QI* é visto com limitações. Entre elas, a de que o teste privilegia o raciocínio lógico-matemático e verbal, deixando em segundo plano outras habilidades, como criatividade e liderança. O desempenho também varia com fatores como nível de cansaço, ambiente, diferenças culturais e socioeconômicas, e oscila ao longo da vida. Tem outra: os resultados podem melhorar com a prática. Um estudo publicado em 2015 por pesquisadores da Universidade Estadual de Ohio (EUA), demonstra que repetir duas vezes um teste comum de raciocínio pode aumentar o QI em cerca de oito pontos.

O presidente da Mensa Brasil, Carlos Eduardo Fonseca, diz que provas convencionais têm características que podem atrapalhar a identificação. “Uma pessoa com [sintomas de] ansiedade pode ter prejuízos em testes”, exemplifica. “O teste de QI nada mais é do que um mini vestibular: você vai se sair bem se tiver boa atenção”.

*O QI é calculado dividindo-se a idade mental pela idade cronológica e multiplicando o resultado por 100. A média é 100, com desvio padrão de 15, o que significa que cerca de 90% da população mundial pontua entre 85 e 115. Resultados abaixo dessa faixa indicam algum comprometimento intelectual, enquanto acima dela refletem um desenvolvimento cognitivo mais avançado. Indivíduos que alcançam 130 pontos ou mais são considerados superdotados.

A controvérsia dos QIs extremos

Pontuações altas demais são consideradas inviáveis por especialistas, mas ganham atenção nas redes sociais. É o caso de Hindemburg Melão Jr., que afirma ter “o QI mais alto do Brasil”. Ele alega já ter atingido 233 pontos aos três anos — e, já adulto, a pontuação de 155. Já o cientista sul-coreano YoungHoon Kim vai além: com 276 pontos, diz ter o “QI mais alto do mundo”, segundo a entidade Official World Record® (OWR). Em seu perfil no X (antigo Twitter), Kim tenta usar o título para amparar declarações controversas, entre elas a de que “Deus criou apenas dois gêneros”.

De acordo com o pesquisador e membro da Mensa Cicero de Moraes, as duas marcas são impossíveis, visto que os testes de QI tem um limite confiável de 160 pontos. “Acima disso, faltam evidências formais”, argumenta. “No Brasil, testes usam grupos de cerca de 2 mil pessoas, com menos de 10 indivíduos acima da faixa dos 139 pontos. Para detectar alguém com QI de 160, seria necessário testar pelo menos 33 mil pessoas”, estima.

 Fábio Miguel Até o início da década de 1980, a aptidão dos superdotados era medida quase que exclusivamente pelo QI — Foto: Fábio Miguel

A crítica é reforçada por dois estudos do pesquisador, um publicado em fevereiro e outro em abril, que destacam falhas nos relatos de QIs altíssimos. No caso do sul-coreano, Moraes vê também um conflito de interesses: a organização que divulgou a pontuação, a OWR, é chefiada por um integrante da United Sigma Intelligence Association (USIA), criada pelo próprio Kim.

Testes de QI não são a única ferramenta disponível. Avaliações de neuropsicólogos podem ser opções mais abrangentes, oferecendo uma investigação clínica completa. Além do QI, esse processo costuma incluir entrevistas com pais e professores, aplicação de testes neuropsicológicos, análise de desenhos, redações e maquetes, bem como o levantamento detalhado do histórico da pessoa.

Se o QI não dá conta de explicar a complexidade da superdotação, será que o próprio cérebro pode oferecer pistas? De acordo com o neurologista Igor de Lima e Teixeira, especialista em transtornos cognitivos e do comportamento pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) de Botucatu (SP), a estrutura cerebral de pessoas com altas habilidades costuma amadurecer mais cedo e formar conexões de maneira mais rápida e eficiente.

Para ilustrar, o médico usa uma metáfora: enquanto uma pessoa sem superdotação caminha por ruas estreitas, fazendo desvios e entrando em várias esquinas, o superdotado seguiria pelo mesmo percurso, mas por uma avenida ampla e direta. Essa vantagem, porém, não está na quantidade de neurônios — praticamente igual para todo mundo —, mas na agilidade das conexões entre eles.

“Alguns estudos mostram que, embora a velocidade de processamento dessas pessoas possa ser até 30% maior em relação à população não superdotada, o superdotado consome menos glicose e oxigênio ao realizar uma tarefa”, afirma Teixeira. Essa eficiência se relaciona à neuroplasticidade, ou seja, à capacidade do cérebro de formar novas ligações. “Fora isso, o superdotado também consegue mudar redes neuronais que possam atrapalhar, o que a gente chama de poda neuronal. Isso faz com que aprendam mais rápido e precisem de menos repetições para aprender uma mesma função”.

O problema é que, muitas vezes, existem falhas na identificação, seja porque a superdotação é confundida com outra condição ou porque ela passa despercebida. “Não é porque a pessoa é superdotada que ela não terá nenhuma dificuldade, pelo contrário. E não é porque ela tem um transtorno que não pode ser superdotada”, ressalta a psicóloga Tatiana Nakano.

Um exemplo comum é a confusão com o transtorno de ansiedade generalizada (TAG). Conforme explica o psiquiatra superdotado Luiz Carlos de Oliveira Júnior, os dois quadros geram pensamentos acelerados, mas a diferença está na origem do sintoma: em superdotados, a aceleração nasce da curiosidade e dos múltiplos interesses. Já no TAG, vem das preocupações excessivas, do medo e de visões catastróficas. Luiz, que tem 46 anos, lembra que, enquanto cursava Medicina, também leu sobre teologia, gastronomia e arte. “Até pensei em ser padre na época”. Ele resume o conflito com uma frase que ouviu de sua terapeuta: “nunca será possível colocar em prática tudo o que sua mente produz; então, pare de sofrer com isso”.

A superdotação pode coexistir com outras condições, como Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou mesmo dislexia, a “dupla excepcionalidade” - psicóloga Tatiana Nakano.

A superdotação também pode ser confundida com TDAH ou Transtorno Opositor Desafiador (TOD). No primeiro caso, o que parece desatenção pode ser apenas falta de estímulo intelectual, levando ao tédio e à desmotivação. Já no segundo, resistência às regras ou a figuras de autoridade não indicam impulsividade ou dificuldades a nível emocional, mas sim a ausência de desafios adequados.

No TEA, a diferença está principalmente na forma de sensibilidade. Enquanto pessoas autistas tendem a reagir de maneira mais intensa a estímulos externos, como sons, luzes ou contato físico, para quem tem altas habilidades e superdotação, essa sensibilidade se expressa sobretudo no campo emocional. “A pessoa se emociona mais com música ou com drama. Lá em casa, eu sou uma piada, todo mundo brinca [com isso]”, conta Luiz. “Tem filme que eu não assisto mais, porque sinto profundamente as emoções”.

Outra diferença importante está na socialização. Enquanto pessoas com TEA podem ter maiores dificuldades de interpretar nuances sociais, superdotados tendem a se relacionar bem, embora muitas vezes busquem momentos solitários para se dedicar a seus interesses. Por dominarem temas mais avançados que pessoas da mesma idade, um resultado pode ser o isolamento social — um fator de risco relevante para transtornos mentais como depressão e ansiedade, ainda que estudos não apontem uma relação direta entre as altas habilidades e as respectivas condições.

A psicóloga Cristina Delou, especialista em superdotação há mais de 40 anos e professora aposentada da UFF (Universidade Federal Fluminense), explica que pessoas com altas habilidades podem optar por buscar vínculos com os mais velhos. “Os superdotados estão fazendo vínculos afetivos que com pessoas de mesma idade eles não conseguem ter”, observa Delou. “Isso é um sofrimento atroz”.

Jéssica de Paula Peixoto, mãe de Nicolle, notou essa dinâmica com a filha. “Ela é uma criança que se destaca na sala de aula, apesar de ser a mais nova. Este ano, tivemos o problema de as amizades não aceitarem, e até mesmo excluí-la. Os colegas não querem que ela esteja naquele grupo porque se destaca demais, e isso acabou trazendo bullying”.

A superdotação também pode trazer outros agravantes para a socialização, como perfeccionismo excessivo, o medo de fracassar, autocobrança elevada e baixa autoestima. “A ansiedade acaba tomando conta, porque é uma preocupação constante atingir as expectativas que ela coloca”, diz Jéssica, sobre Nicolle. “Ela tem dificuldade de lidar com resultados ruins, e o conflito interno, que eu vejo que nunca acaba, é o de se sentir diferente dos demais”.

Luiz Carlos de Oliveira Júnior também notou essas diferenças na infância. Enquanto a maioria dos garotos jogava futebol, aos 7 anos ele queria aprender a mumificar, fascinado pelo Egito Antigo. Aos 9, pediu de presente um globo terrestre; aos 10, uma enciclopédia. Depois, vieram um telescópio, um microscópio — e, em vez de gibis, leituras de Platão e revistas de divulgação científica, como a Globo Ciência (atual GALILEU).

“Contei para um chefe [sobre a superdotação] e ele começou a fazer perguntas de matemática. Tem muita gente que evita falar sobre as altas habilidades” - Carlos Eduardo Fonseca, sobre o desconhecimento a respeito da superdotação

A vocação intelectual o levou a se tornar psiquiatra, professor da UFU (Universidade Federal de Uberlândia) e fundador da MEVBrasil (Escola Brasileira de Medicina do Estilo de Vida). Mas também trouxe desafios: crises de angústia, burnout e síndrome do impostor. “Eu me sentia uma fraude”, diz.

O despertar sobre a superdotação só veio perto dos 40 anos. Ao atender pacientes com diferentes perfis cognitivos, percebeu que ele próprio poderia ser um caso do tipo — algo confirmado, depois, por uma neuropsicóloga. “Muitos pacientes viveram a mesma ex- periência que eu: sentir estar à frente da própria idade, ter interesse por conversar com pessoas mais velhas. Isso faz nascer uma sensação de exclusão”, relata.

 Arquivo pessoal A família de superdotados Ygor Ribeiro (pai), Lis, Theo, Yuri e Jessica (mãe) — Foto: Arquivo pessoal

Theo Ribeiro, de 9 anos, é outro brasileiro que demonstrou habilidades muito acima da média. Ele aprendeu toda a tabuada em dois dias — algo que crianças da mesma idade levam um ano para gravar. Sabia ler e escrever aos três, e aos cinco tornou-se o brasileiro mais jovem na Mensa Internacional, com 145 pontos de QI, índice equivalente a um jovem de 14 anos. “Faço muitas perguntas dentro de casa e tento entender as coisas. Ser superdotado é ser muito curioso. Os pais têm bastante trabalho para responder tudo”, diz.

Theo faz parte de uma família de superdotados. Em 2023, sua irmã Lis, então com 3 anos, alcançou 143 pontos no teste de QI. Hoje, assim como Theo, ela integra a Mensa e outras duas sociedades internacionais de altas habilidades: a Intertel e a IIS (In- finity International Society). Agora, a expectativa recai sobre o caçula, Yuri, de 2 anos, que já demonstra desenvolvimento avançado e fará avaliação de QI quando for mais velho. A descoberta mais recente foi a do pai das crianças, Ygor Ribeiro, de 36 anos, identificado como superdotado em 2024.

A ciência ainda debate a influência da genética no desenvolvimento das altas habilidades, reconhecendo, ao mesmo tempo, a importância do ambiente. Estímulos adequados na infância, melhor acesso à educação, incentivo à curiosidade e oportunidades para explorar interesses específicos podem potencializar talentos naturais.

 Arquivo pessoal Os irmãos superdotados Theo, Lis e Yuri — Foto: Arquivo pessoal

No ano passado, a família Ribeiro fez um teste genético pela empresa Tellmegen, que indicou uma possível predisposição para altas habilidades. O laudo neuropsicológico, no entanto, segue sendo mais determinante. “Conversamos com a geneticista chefe do laboratório e ela explicou que isso ainda é uma ciência em formação. Não tem como determinar de maneira 100% concreta [que a causa é genética]”, explica Ygor.

Essas limitações refletem o estado atual da pesquisa sobre hereditariedade da inteligência. Estima-se que apenas entre 20% e 30% da variância genética do QI seja explicada, segundo o Genetic In- telligence Project (GIP) — primeiro relatório dedicado a estimar a inteligência a partir de dados genômicos. A iniciativa, liderada pelo neurocientista brasileiro Fabiano de Abreu, analisou mais de 100 superdotados e cruzou os resultados com o GWAS Catalog, um extenso banco internacional de estudos sobre o genoma.

O projeto já trouxe achados importantes. Descobriu que certas variantes genéticas podem atenuar déficits cognitivos. Esse tipo de interação pode ajudar a explicar por que alguns superdotados têm desempenho excepcional mesmo na presença de certas variantes de risco, como aquela associada à esquizofrenia.

Essas descobertas genéticas ecoam em observações da vida real: casos de superdotação entre pais e irmãos não são incomuns entre os membros da Mensa. Durante um evento da sociedade de alto QI em Brasília, em julho, vários familiares fizeram testes genéticos. “Existe um caso em que quatro pessoas da mesma casa são superdotadas: marido, esposa e os dois filhos. E não é um caso isolado, temos também em Jundiaí e em Portugal”, cita Carlos Eduardo Fonseca, presidente da Mensa Brasil.

Fonseca, que é jornalista, se descobriu superdotado aos 35 anos e sentiu como se sua crise de meia-idade tivesse sido antecipada pela descoberta. Ele também passou a ser constrangido no trabalho. “Eu contei para um chefe [sobre a superdotação] e ele começou a fazer perguntas de matemática para mim”, relata. “Isso é até engraçado, mas realmente tem muita gente que evita falar sobre as altas habilidades por conta do bullying”.

Inclusão ainda é um problema

Em 2015, a Lei 13.234 determinou que estudantes com altas habilidades ou superdotação devem ser identificados, cadastrados e atendidos. Mas, dez anos depois, sua aplicação segue longe do ideal. Famílias relatam que o cumprimento é irregular, variando de região para região, além de se restringir quase exclusivamente às escolas públicas, deixando a rede privada de fora.

As barreiras surgem desde o laudo de excepcionalidade. Uma avaliação completa, feita por um neuropsicólogo particular e composta por uma bateria de testes, pode custar de R$ 2 mil a R$ 4 mil — valor equivalente a pelo menos dez sessões. A Mensa aplica testes de inteligência mais acessíveis, só que enxutos: um coletivo, por R$ 119, e um individual, por R$ 179 (temporariamente suspenso para atualização).

O SUS não oferece a avaliação, convênios raramente cobrem esses exames, e as filas em universidades ou ONGs podem levar meses. Para garantir o atendimento adequado, algumas famílias se esforçam: a de Nicolle juntou férias e 13º para pagar um teste particular e se mudou de estado para que a jovem continuasse os estudos em outra escola. A de Theo e Lis Ribeiro contratou um advogado e, só após decisão judicial, conseguiu que ambos avançassem de ano. A discrepância entre a lei e a prática se reflete nos números. O Censo Escolar de 2024 identificou 44 mil estudantes superdotados — cerca de 1,6% do total estimado no Brasil.

No entanto, o número pode superar 2,7 milhões. “São milhões de crianças e jovens invisíveis ao sistema educacional, sem o atendimento especializado ao qual têm direito. E este não é um atendimento opcional, é um dever do Estado brasileiro”, afirmou o presidente da Mensa Brasil durante uma audiência em abril sobre o novo PNE (Plano Nacional de Educação). Fonseca destaca que a proporção estimada de superdotados no mundo é semelhante à de indivíduos com autismo. “Por que temos 1 milhão de crianças autistas identificadas [no Brasil] e são 44 mil estudantes superdotados identificados? Por que tem pouca identificação dessa neurodivergência? É preciso buscar a identificação mais ampla, para que se possam obter direitos para as crianças e uma investigação clínica para adultos”, defende.

 Fábio Miguel Em 2015, a Lei 13.234 determinou que estudantes com altas habilidades ou superdotação devem ser identificados, cadastrados e atendidos. — Foto: Fábio Miguel

A psicóloga Cristina Delou destaca que a identificação das altas habilidades também serve para proteger a saúde mental. Não é incomum, inclusive, que um adulto depressivo e com baixa produtividade tenha sido um excelente aluno na infância. “Às vezes, a superdotação ainda está ali, mas o sofrimento psíquico não permite que isso venha à tona”, afirma a especialista.

Com experiência em diferentes contextos sociais — inclusive em favelas cariocas, como a Rocinha —, Delou defende um modelo que não limite os estudantes pela idade, e critica o fato de a super dotação ser frequentemente tratada como deficiência em projetos de lei. Para ela, outro obstáculo central é o despreparo dos professores, que deixam de propor novos desafios, interpretando a frustração dos alunos como indisciplina.

“Não há mais como colocar debaixo do tapete as altas habilidades ou superdotação”, defende. “O professor não pode mais alegar que não tem alunos superdotados. Ao fazer isso, está negando, inclusive, o aluno pobre da escola pública, que só poderá manifestar todo o seu valor para a sociedade se tiver acesso aos níveis mais elevados de ensino”.

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