Vidro, pincel e ilusão: o truque ‘mágico’ do cinema antes da computação gráfica

há 4 dias 3
ANUNCIE AQUI

Antes do CGI revolucionar Hollywood, uma técnica centenária permitiu que cineastas criassem cenários impossíveis, cidades inteiras e até mesmo abismos mortais sem gastar fortunas em construções físicas. A solução? Placas de vidro comum pintadas à mão e posicionadas estrategicamente na frente das câmeras. Essa inovação, conhecida como “glass shot” ou matte painting, foi introduzida em 1907 por Norman Dawn e transformou para sempre a linguagem visual do cinema.

O surgimento de um truque revolucionário

No início do século 20, cineastas enfrentavam um desafio: como mostrar lugares grandiosos ou cenários caprichados e monumentais sem recorrer a construção completa daqueles locais? A resposta genial veio com o chamado “glass shot” ou pintura em vidro. O processo era elegante em sua simplicidade: uma placa de vidro transparente era posicionada entre a câmera e o set real, recebendo uma pintura realista diretamente sobre ela. Só restava deixar transparente as áreas onde os atores iriam interagir, permitindo capturar tudo em um único clique de câmera.

O pioneiro dessa mágica foi Norman O. Dawn, que, em 1907, restaurou detalhes arquitetônicos sobre ruínas reais para o filme Missions of California

Dawn, que começou sua carreira como fotógrafo imobiliário, já usava o truque de pintar sobre vidro para esconder elementos indesejados de propriedades — e simplesmente adaptou a técnica para o cinema. O resultado? Construções perfeitas, unindo arte e realidade instantaneamente, sem pós-produção longa.

A técnica por trás da ilusão

Peter ellenshaw mattepaint blog history matte painting 6c96f4

O vidro era montado em uma moldura de madeira ou metal resistente e posicionado estrategicamente na frente da lente. Como a câmera não enxerga em 3D, bastava que a pintura estivesse em foco para que a ilusão funcionasse perfeitamente — mesmo estando a poucos centímetros da lente enquanto os atores se moviam metros atrás

O material usado era vidro de janela comum e transparente, e os artistas aplicavam primeiro uma camada de primer — geralmente tinta Krylon branca — antes de pintar com acrílico ou guache. O ponto de transição entre a parte pintada e o cenário real era cuidadosamente escondido em sombras, bordas de construções ou elementos naturais da cena

Um grande diferencial dessa técnica era que o diretor via o resultado final imediatamente, através do visor da câmera. Não havia necessidade de esperar semanas pela revelação ou composição em laboratório — era tudo capturado ao vivo, em um único take. A grande vantagem comercial era que o efeito era sempre de primeira geração, gravado diretamente no negativo original sem perda de qualidade.

A genialidade de Chaplin: patinação no abismo que nunca existiu

A cena mais famosa da técnica de glass shot talvez seja a sequência de patinação de Tempos Modernos (Modern Times), lançado em 1936, Nela, o icônico “Vagabundo”, interpretado por Charles Chaplin, patina de olhos vendados no quarto andar de uma loja de departamentos, aparentemente se aproximando perigosamente de um abismo mortal onde o piso havia desabado.

chaplin charlie chaplin

A realidade por trás da cena é ainda mais impressionante que a ilusão. Chaplin realmente patinou — e com maestria, graças às suas habilidades circenses do vaudeville. Mas o abismo nunca existiu. O “buraco” no chão era inteiramente uma pintura fotorrealística aplicada sobre uma placa de vidro posicionada a poucos metros da câmera.

O artista Bud Thackeray criou a pintura com precisão cirúrgica. Para tornar a ilusão ainda mais convincente, ele fez um pequeno corte no vidro pintado no formato exato da tábua de madeira que aparecia no primeiro plano, criando um “overlap” perfeito entre o cenário real e a pintura. O resultado? Uma transição invisível que enganou plateias por décadas!

No cinema, antes do CGI, usava-se vidro pintado para criar as ilusões. pic.twitter.com/IB758M58mw

— Arquivo Curioso (@arquivocurioso) October 6, 2025

A descoberta de como o truque funcionava só veio anos depois, quando o especialista em efeitos visuais Craig Barron analisou a cena quadro por quadro e notou que, por alguns frames, as rodas traseiras dos patins de Chaplin desapareciam atrás da pintura matte — revelando finalmente o segredo por trás da mágica.

Pinturas que fizeram história

Screen Shot 2015 11 27 at 17.22.45 gigapixel standard scale

Durante décadas, o vidro pintado foi a espinha dorsal dos efeitos especiais de Hollywood e da Europa. Exemplos fascinantes não faltam:

Cidade Esmeralda em “O Mágico de Oz” (1939): Muito do deslumbramento do caminho de Dorothy até a cidade veio do vidro pintado, criando um ambiente de sonhos perfeitamente sincronizado com a temática da obra.

Blade Runner (1982) usou matte painting construiu sua Los Angeles distópica através de uma combinação ambiciosa: o lendário “Hades Landscape” — uma mesa gigante de 4,5m x 2,4m repleta de miniaturas em latão corroídas com ácido e milhares de cabos de fibra ótica simulando luzes da cidade — foi expandido por cerca de 15 matte paintings criados por Matthew Yuricich, Rocco Gioffre e Michele Moen.

Captura de tela 2025 10 06 150026

As pinturas em acrílico sobre masonite adicionavam arranha-céus imensos e fachadas retrofuturistas ao skyline, criando aquela sensação claustrofóbica de uma metrópole sem horizonte. Yuricich pintava com paleta de cores limitada e baixo contraste porque o filme 5253 internegativo usado por Douglas Trumbull aumentava o contraste em 30% — o resultado na tela era perfeito, mas as pinturas originais pareciam “doentes” quando vistas ao vivo

RoboCop (1987) recorreu à técnica para ampliar a imponência da sede da OCP, transformando o Dallas City Hall em um arranha-céu corporativo muito mais grandioso através do trabalho do artista Rocco Gioffre.

Matte Paiting 2

Além de expandir universos, a técnica poupava dinheiro, tempo e riscos. Cenas perigosas ― como penhascos ou abismos falsos ― podiam ser feitas sem expor atores a riscos reais: era tudo vidro, luz e talento.

Do pincel ao mouse: a transição para o digital

A era digital não matou o matte painting — apenas o transformou. O primeiro matte painting digital foi criado pelo artista Chris Evans em 1985 para Young Sherlock Holmes, em uma cena com um cavaleiro saltando de um vitral. Evans pintou a janela em acrílico, depois escaneou a obra no sistema Pixar da LucasFilm para manipulação digital — um marco histórico que abriu caminho para a revolução dos pixels

A única desvantagem reconhecida era o tempo que o artista levava para concluir a pintura no set, enquanto elenco e equipe aguardavam. Por isso, em 1911, Norman Dawn desenvolveu uma evolução da técnica: o “original negative matte painting”, onde áreas do filme eram simplesmente bloqueadas com cartões pretos durante a filmagem, permitindo que a pintura fosse adicionada posteriormente em laboratório.

A partir dos anos 1990, softwares como Photoshop, Nuke e programas 3D como Blender passaram a substituir pincéis e placas de vidro. Atualmente, matte painters trabalham com tablets digitais, combinando fotografias reais, renders 3D hiperrealistas e técnicas de pintura digital para criar cenários que seriam impossíveis ou caros demais para construir fisicamente. O matte paiting também é muito utilizado em ilustrações para publicidade.

matte paiting02

A técnica continua extremamente relevante: em 9 entre 10 filmes modernos utilizam matte painting digital, segundo especialistas. Produções de streaming como Dois Papas (2019), de Fernando Meirelles para a Netflix, recriaram inteiramente o Vaticano em estúdio usando chroma-key e matte painting — o público nem percebeu que nunca pisaram nas locações reais.

001

002

Clássicos também foram refeitos com a técnica digital: King Kong (2005), O Mágico de Oz (2013), Senhor dos Anéis e O Hobbit abusaram de matte painting 3D com camera mapping, permitindo movimentos tridimensionais de câmera impossíveis na era analógica. O cinema elevou a magia do sonho ao status de para-realismo, principalmente com a adição da modelagem e animação em três dimensões.

Captura de tela 2025 10 06 143843Matte paiting em Game of Thrones

A profissão de matte painter também se expandiu: além do cinema e publicidade, games AAA demandam profissionais capazes de criar cenários fotorrealistas digitalmente. A diferença é que agora, em vez de esperar a tinta secar no vidro, os artistas trabalham em camadas do Photoshop — mas o princípio permanece o mesmo: enganar o olho humano com arte pura.

Você também deve ler!

Como é possível um filme muito antigo ser lançado em 4K?

Ler artigo completo