Para Freire, regulação de IA deve buscar o meio termo entre inovação e preservação de direitos

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Alexandre Freire, conselheiro da Anatel

O debate sobre as políticas de Inteligência Artificial e o papel do governo e dos reguladores nesse ecossistema ainda está se desenrolando. No setor de telecomunicações, a Anatel lançou em agosto, e concluiu na semana passada, uma consulta pública com uma proposta de alteração do Regulamento de Fiscalização Regulatória para incluir aspectos relativos ao uso de inteligência artificial. As respostas, especialmente do setor, foram muito cautelosas em relação ao quanto a agência deve avançar nesse tema.

Mas esse processo não é de agora. Desde o começo do ano a agência tem i IA.Lab, dedicado ao estudo do tema, e em diversos processos internos o uso de IA começa a ser uma realidade. 

Recentemente, o conselheiro Alexandre Freire foi nomeado pelo Ministro das Comunicações, Frederico Siqueira, para integrar o grupo ministerial que executa o Plano Brasileiro de IA (Decreto nº 11.991/2024), e tem assumido, na Anatel, a interlocução sobre as pautas relacionadas a IA, inclusive em audiências públicas no Congresso Nacional. Dentro da Anatel, foi de Freire a iniciativa de criar o IA.Lab, uma espécie de grupo dedicado aos temas de IA, tanto nos trabalhos internos da Anatel, onde a agenda já evoluiu para algumas aplicações, como também de demandar do setor informações sobre o uso de IA, e possíveis regulações necessárias. Nesta entrevista, Freire comenta a atuação da agência na frente dos debates sobre Inteligência Artificial e os possíveis desdobramentos destas iniciativas.

TELETIME – No início do ano a agência criou o IA.Lab, vinculado ao CEADI, que fica sob sua coordenação. Qual tem sido a atuação desse grupo?

Alexandre Freire – O recente grupo de trabalho criado pela Anatel para discutir Inteligência Artificial tem como propósito estruturar uma atuação estratégica, coordenada e prospectiva da agência diante dos desafios trazidos por essa tecnologia. Ao instituir o IA.Lab, a Anatel buscou criar um verdadeiro think tank interno, reunindo representantes de todas as superintendências e especialistas para apoiar o Conselho Diretor e as áreas técnicas na formulação de políticas, no acompanhamento de casos concretos e no desenvolvimento de soluções inovadoras.

Nesse sentido, o grupo nasceu com uma dupla missão: por um lado, consolidar uma política institucional de governança em IA, ancorada em princípios como supervisão humana, responsabilidade, respeito aos direitos fundamentais e mitigação de riscos; por outro, fomentar a inovação regulatória, seja por meio de iniciativas como o guia de melhores práticas, a criação de um sandbox regulatório ou o planejamento de uma conferência anual dedicada ao tema .

Além disso, o grupo busca articular e integrar o portfólio de projetos de IA em desenvolvimento na própria Anatel — como soluções de análise documental, chatbots, sistemas de apoio à fiscalização e ferramentas de classificação de políticas públicas — assegurando sinergia institucional e eficiência. Do mesmo modo, promove a análise de casos concretos de uso de IA por prestadoras de telecomunicações, avaliando riscos e conformidade regulatória, o que reforça o papel da Agência como guardiã da segurança, da transparência e da inovação no setor .

Assim, o propósito central do grupo é criar um espaço estruturado de diálogo, inovação e governança, capaz de preparar a Anatel não apenas para acompanhar a evolução da inteligência artificial, mas também para antecipar riscos, apoiar o desenvolvimento sustentável do setor de telecomunicações e garantir que os benefícios da IA sejam colhidos pela sociedade de forma ética, inclusiva e segura.

Quais as principais preocupações da agência em relação ao uso de IA pelo setor de telecomunicações?

A Anatel tem se debruçado sobre o uso de inteligência artificial pelas prestadoras com uma postura cautelosa, mas também construtiva. A preocupação central reside em assegurar que as soluções adotadas estejam em conformidade com a legislação vigente, especialmente no que se refere à proteção de dados pessoais, à transparência dos algoritmos e à precisão das informações oferecidas aos consumidores. Nesse sentido, casos concretos já analisados,  como assistentes virtuais de grandes operadoras, revelaram a necessidade de avaliar riscos de vazamento de dados, inconsistências de atendimento e possíveis impactos sobre os direitos dos usuários.

Além disso, a agência tem como foco prevenir assimetrias e riscos regulatórios que poderiam advir da adoção indiscriminada de sistemas de IA, bem como evitar que essas ferramentas comprometam a qualidade dos serviços ou a confiança do consumidor no setor de telecomunicações. Por isso, ao mesmo tempo em que reconhece o potencial transformador da IA, a Anatel entende que esse processo deve ser acompanhado de supervisão responsável, mitigação de riscos e constante atualização de práticas de governança.

A agência pretende tomar medidas que estimulem o uso de IA ou o objetivo é apenas evitar excessos?

A postura da Anatel não se restringe a coibir excessos; ao contrário, a agência busca criar um ambiente equilibrado que seja capaz de estimular a inovação com responsabilidade. Para tanto, o IA.Lab tem atuado como catalisador de iniciativas que promovem o uso seguro e transparente da inteligência artificial, tanto dentro da própria agência quanto no setor regulado.

Entre as medidas em estudo, destacam-se a elaboração de um guia de melhores práticas, construído inclusive em diálogo internacional, e a proposta de um sandbox regulatório, que permitirá testar e monitorar inovações em condições controladas. Essas iniciativas refletem uma visão proativa: em vez de apenas reagir a problemas, a Anatel busca antecipar tendências, apoiar a inovação e, ao mesmo tempo, garantir que os avanços tecnológicos sejam compatíveis com os direitos dos cidadãos e com a estabilidade regulatória .

Em suma, o objetivo da agência é duplo: evitar riscos que possam comprometer a confiança do setor e, simultaneamente, incentivar a adoção de soluções de IA que tragam ganhos efetivos de eficiência, inclusão e qualidade para os serviços de telecomunicações.

De que maneira o trabalho do IA.Lab interage com o Comitê de Infraestrutura da agência?

A experiência do CEADI/Anatel ao estruturar o IA.Lab posiciona a agência para tratar a IA como um vetor transversal de política pública. Essa integração ocorre em três camadas: (i) cartografia técnica, mapeando como IA depende e impacta redes de alta capacidade, data centers e sistemas de interconexão; (ii) governança e boas práticas, difundindo padrões de uso responsável — transparência, explicabilidade, segurança e mitigação de vieses — a serem refletidos nas rotinas de planejamento e operação de infraestrutura; e (iii) inteligência regulatória aplicada, com estudos e provas de conceito que antecipam gargalos (energia, resiliência, latência, roteamento) e informam decisões do Comitê. No caso de data centers, por exemplo, a IA otimiza controle térmico, alocação de cargas e eficiência energética; logo, a coordenação CEADI/IA.Lab–Comitê traduz-se em insumos técnicos para decisões que preservem continuidade, segurança e custo-eficiência da infraestrutura crítica.  

A agência vê a necessidade de atuar de maneira mais relevante na camada de infraestrutura de dados?

Sim. Por razões de soberania digital, competitividade e segurança sistêmica. Sem abandonar sua vocação setorial, a Anatel vem ampliando a lente para observar impactos regulatórios e de políticas públicas sobre data centers, cabos submarinos e computação em nuvem. Esse olhar integrado já gerou resultados concretos: na revisão do Regulamento de Segurança Cibernética (sob minha relatoria), estenderam-se obrigações de segurança a operadoras de cabos submarinos com destino internacional e aprofundaram-se salvaguardas sobre o uso de data centers e cloud por prestadoras, alinhando proteção física e cibernética em toda a cadeia. A atuação relevante nessa camada significa diagnosticar dependências críticas, evitar assimetrias regulatórias e reforçar padrões de resiliência, disponibilidade e governança, tudo em cooperação com outros órgãos de Estado.  

Como serão coordenadas as ações para incorporar IA em fiscalização, regulação e acompanhamento de mercado?

A coordenação parte de um inventário vivo das iniciativas em curso e converge em três instrumentos: (i) projetos finalísticos, a exemplo dos três TEDs com IFES sob coordenação do CEADI, aplicando IA a processos sancionadores, gestão do espectro e avaliação de qualidade e segurança de redes/serviços; (ii) adoção operacional, IA já auxilia o SEI, o tratamento de demandas de usuários (call center), o planejamento de rotas de infraestrutura e a detecção de comercialização de produtos não certificados em marketplaces; e (iii) normas internas estratégicas — a Política de IA (com previsão de publicação no início do segundo semestre) e a Estratégia de IA da Anatel, estruturada em dois eixos: uso interno (eficiência regulatória) e uso externo (capacidades regulatórias). Tudo conectado ao item 10 da Agenda Regulatória 2025-2026, que reavalia normas à luz do uso de IA em toda a cadeia de valor. O IA.Lab funciona como orquestrador metodológico, garantindo interoperabilidade, gestão de risco e mensuração de resultados.  

Entre o risco de "regular demais" e o de "não regular", onde a Anatel se posiciona? Essa foi uma preocupação que apareceu na recente consulta pública da Anatel sobre regulação de IA…

A posição da Anatel é de buscar um ponto de equilíbrio dinâmico: promover a inovação em inteligência artificial sem abrir mão da proteção de direitos, da segurança das redes e da preservação do interesse público. Reconhecemos que a ausência de regulação pode gerar um vácuo normativo, com riscos à privacidade, à transparência e à concorrência. Contudo, é igualmente importante advertir contra o risco oposto: o de uma regulação excessivamente minudente, que pretenda antecipar e normatizar cada detalhe técnico do desenvolvimento e da aplicação da IA.

Modelos desse tipo, ao invés de oferecer segurança jurídica, acabam por engessar a capacidade adaptativa do Estado e desestimular investimentos. A experiência internacional mostra que regulações demasiado prescritivas podem transformar o ambiente regulatório em um campo de incertezas, em que inovadores hesitam em atuar pelo medo de não conseguir atender a requisitos burocráticos desproporcionais ou sujeitos a rápida obsolescência. Em um setor marcado pela velocidade exponencial da inovação, normas rígidas e excessivas não apenas deixam de proteger a sociedade, como criam barreiras artificiais à entrada de novos atores, comprometendo a competitividade nacional.

É nesse contexto que a Anatel defende um modelo regulatório baseado em princípios, com ênfase em proporcionalidade, análise de risco e diálogo interinstitucional. Trata-se de preservar clareza e previsibilidade regulatória, sem sufocar a experimentação responsável. A regulação deve funcionar como um guarda-chuva normativo que assegure transparência, accountability e mitigação de riscos, mas que deixe espaço para sandboxes regulatórios, arranjos experimentais e desenvolvimento incremental de soluções.

Assim, o papel da Anatel não é desenhar a inteligência artificial em seus detalhes técnicos, mas criar as condições para que o ecossistema floresça com segurança, confiança e competitividade. Esse equilíbrio é fundamental para que o Brasil não apenas acompanhe o ritmo global da inovação, mas se projete como protagonista na governança internacional da IA.

O Projeto de Lei nº 2.338/2023, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, tem gerado intenso debate sobre qual deve ser a competência institucional para a regulação da Inteligência Artificial no Brasil. Qual é a sua visão sobre o modelo mais adequado de distribuição de competências regulatórias nesse tema sensível e estratégico?

A tramitação do Projeto de Lei nº 2338/2023 sobre Inteligência Artificial no Congresso Nacional representa um marco não apenas para a inovação, mas também para a capacidade do Estado de se organizar de maneira orgânica e responsável diante de uma tecnologia que atravessa todos os setores da vida social e econômica.

Tenho refletido sobre esse tema como membro do Grupo de Trabalho ministerial responsável pela política brasileira de IA e como responsável pelo tema de IA na Anatel. Nessas funções, tive a oportunidade de expressar essas preocupações em audiência pública da Comissão Especial da Câmara dos Deputados sobre Inteligência Artificial, bem como em eventos nacionais e internacionais sobre o tema.

É essencial que o projeto de lei estabeleça uma autoridade de supervisão geral capaz de assegurar princípios comuns como transparência, ética e proteção de direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que respeite a competência das agências reguladoras setoriais, que acumulam décadas de expertise técnica em suas áreas específicas.

O desafio está em conciliar unidade e diversidade: uma instância central que ofereça coerência e harmonização e, ao mesmo tempo, agências que detalhem as regras de acordo com as peculiaridades de cada setor. Assim, evitam-se fragmentação regulatória, lacunas de competência ou sobreposição de exigências, garantindo inovação, segurança jurídica e fortalecimento institucional.

Pensar o Estado de forma orgânica significa reconhecer que os seus entes não competem entre si, mas se complementam. Um marco regulatório de IA que reflita esse equilíbrio será decisivo para que o Brasil se posicione como referência internacional em inovação responsável, alinhando desenvolvimento tecnológico, direitos fundamentais e segurança institucional.

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