Dia da Consciência Negra: o que servidores pretos e pretas têm a dizer?

há 5 dias 7
ANUNCIE AQUI

OUVIR NOTÍCIA

Profissionais destacam importância do poder público como ferramenta de melhoria da condição afro-brasileira e apontam para a necessidade de maior representatividade em espaços de poder

Da esquerda à direita: Andreia Anchieta, Wilke Lima, Sandrely Alves e Alessandra Maranhão
imagens: Diego Barbosa

Em meados de 1530, o primeiro navio transportando pessoas escravizadas da Guiné chega ao Brasil, marcando o início da experiência negra nas terras tupiniquins. O regime escravocrata que durou mais de 350 anos foi substituído por um processo de marginalização e criminalização do comportamento das famílias negras. Atualmente, pretos e pardos continuam em processo de reorganização social e ainda lutam para garantir de forma integral direitos naturais, como os direitos a personalidade, a propriedade e a liberdade. Apesar de registrar avanços em níveis de escolarização, renda e representação política, a desigualdade socioeconômica referente às pessoas brancas permanece quase intacta e necessita da reflexão de toda a sociedade.

O quadro atual brasileiro preocupa. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 70% da população carcerária é negra. Segundo o Insper, o salário médio de um profissional negro é 42% menor que de um branco e presença de pretos em cargos de liderança não chega a um terço no país. Em cargos executivos, o número não chega a 8%. Mulheres negras sofrem mais violência obstétrica e representam 66% da mortalidade materna de acordo com o SUS. Em 2023, a taxa de homicídios entre negros foi cerca de 2,7 vezes maior do que entre não negros, e pessoas pretas e pardas representaram 76,5% das vítimas de homicídios, conforme dados de 2024 do Atlas da Violência.

Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Canaã convidou quatro servidores públicos para compartilharem seu olhar sobre tema: a gerente do Caps, Andréia Anchieta de Oliveira, a coordenadora técnica dos anos iniciais da Educação, Sandrely de Kássia Gomes Rodrigues Alves, a consultora jurídica da secretaria da Mulher e Juventude, Alessandra Maranhão e o coordenador de políticas de equidade em Saúde, Wilke Silva Lima. A condição do negro no local de trabalho, as perspectivas e como o serviço público pode gerar equidade racial foram comentados pelos profissionais.

Entendendo o Dia da Consciência Negra

O Dia da Consciência Negra foi formalizado em 2003 e instituído como data comemorativa em 2011. A data marca uma celebração à vida de Zumbi dos Palmares e seu significado de luta para comunidade afro-brasileira. “O dia de Zumbi representa força e resistência. Deve ser uma data muito especial para as pessoas negras, uma data para ter orgulho de nossa identidade e das lutas de nossos antepassados”, comenta Wilke. Sandrielly completa: “é um momento importante para reconhecer a luta histórica do povo negro, valorizar sua cultura, suas contribuições para a sociedade e, principalmente, reforçar a importância do combate ao racismo e à desigualdade racial”.

Wilke Silva: “Eu acreditava que o principal problema era mesmo a desigualdade social do país e não suas relações socias contruidas com base num sistema escravizador que durou 400 anos. E é contra isso que luto hoje: para que meninos negros e meninas negras tenham orgulho de si, de sua cor, de seu cabelo.”

Apesar da data já estar consolidada e ter se tornado feriado nacional em 2023, falar de consciência negra ainda desperta discordâncias e desinformação por parte da população por não compreender a necessidade de se discutir a condição do negro no país. 

“A maioria das pessoas no Brasil não entende que a escravidão acabou há menos de 140 anos, o que é muito pouco tempo. Também não compreendem que as marcas desse período ainda existem, porque as pessoas negras foram libertas sem terra, sem moradia, sem acesso à educação, sem indenização e sem apoio do Estado. Enquanto isso, muitas famílias brancas ainda hoje se beneficiam de riquezas construídas naquela época”, endossa, Alessandra.

Falta de representatividade em espaços de poder tem números alarmantes no pais

Entre orgulho e preconceito, a experiência afro-brasileira é marcada por enormes contribuições à língua, à economia e à cultura. Entretanto, essa comunidade é historicamente estigmatizada, sendo associada à violência, pobreza, com sua religião demonizada. Quando estão em espaços de poder, os negros raramente encontram pessoas pretas, como conta Andréia: 

“Confesso que durante muito tempo não tinha a consciência e/ou letramento racial. Nasci e fui criada na periferia de Vitória–ES. E como a maior parte das minhas relações eram com pessoas pardas e pretas, eu não me sentia excluída ou discriminada. Mas, tudo muda quando no ensino médio fui estudar, por mérito próprio, na melhor escola do estado. Na Escola Técnica Federal do Espírito Santo. Era mais difícil passar nessa escola do que no vestibular da Universidade Federal do Espírito Santo. Lá conheci e entendi as diferenças de classes. Local majoritariamente de jovens brancos e de classe privilegiada. Eu era uma das raras pretas e periféricas da escola. Até hoje tenho contato com amizades dessa época. Mas, também passei por várias situações difíceis naquele ambiente elitista”, relata.

Andreia: “Atualmente, a ignorância do racista não me impacta ou incomoda. Já aprendi a me blindar. Ainda assim, não consigo me calar quando vejo alguém sofrer discriminação.”

O relato de Andréia está em consonância à realidade brasileira. A representatividade negra ainda é um tabu no Brasil, o que impacta na adoção de políticas públicas que impactam positivamente a comunidade. Apesar de 56% da população se declarar negra, apenas um terço dos políticos eleitos são pretos. Essa disparidade também se confirma no mercado da moda, na TV e em cargos de nível superior do serviço público, onde o percentual de negros não passa de 33% e é ainda menor no Poder Judiciário, no qual os magistrados negros não chegam a 15%. No Congresso Nacional, o percentual de deputados é de 26% e de senadores é de 25%.

 “Penso que o combate do racismo estrutural de fato passe pelas políticas de acesso-oportunidade-reparação a população negra. O Ministério dos Direitos Raciais têm feita um bonito trabalho. Mas, sabemos que não será fácil. Enfrentar um sistema que Sempre quis nos apagar (no sentido amplo do vocábulo) exige resistência e persistência”, diz Andreia.  

Como o poder público pode ajudar na melhoria da condição negra?

O racismo aparece no perfil das mulheres que chegam ao serviço público, diz Alessandra, que acompanha o dia-a-dia da secretaria da Mulher e Juventude. “As mulheres negras são as que mais sofrem violência doméstica e representam o maior número de mães solos no país. Muitas chegam marcadas pela negligência histórica do Estado, pela desigualdade e pela falta de oportunidades”, complementa.

“Eu sou um exemplo de como políticas públicas podem transformar vidas. A escola pública e a bolsa para o ensino superior mudaram meu percurso e abriram caminhos que antes eram inacessíveis. Hoje, mesmo sendo mãe solo, posso garantir ao meu filho um lar estruturado”, revela a advogada.

Sandrely: “Desde criança, me reconheço como uma mulher preta, guiada pelos ensinamentos dos meus pais, que sempre valorizaram nossa origem e fortaleceram minha autoestima. Cresci cercada por referências positivas, o que me permitiu enxergar minha identidade com orgulho, confiança e dignidade.”

Quando perguntada, Sandrelly é taxativa: “Acredito que o serviço público tem um papel essencial na promoção da justiça racial, por meio de políticas públicas inclusivas, formações continuadas, valorização da representatividade e ações que incentivem o respeito às diferenças em todos os níveis. Combater o racismo é uma responsabilidade de todos nós. O serviço público, como instrumento de transformação social, deve ser exemplo de equidade, respeito e compromisso com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todos.

Andréia defende que é necessário ouvir mais o negro: “É quando suas opiniões são inválidas ao serem sugeridas e tempos depois você vê outras pessoas fazendo exatamente o que você havia proposto. Às vezes, a capacidade do negro é sempre colocada em dúvida. O serviço público precisa investir no letramento racial para todos os servidores. 

Atuante no serviço de saúde, Wilke argumenta que o sistema carece de melhorias. “Não tem como dizer diferente, existe racismo no sistema de saúde. Reconhecer isso já é um dos grandes desafios para os profissionais de saúde, mas só reconhecer que existe racismo não basta. É necessário enfrentá-lo a partir da proposição e execução de ações antirracistas no âmbito dos nossos serviços”. Em 2024, o Governo Federal lançou a estratégia “Saúde sem Racismo”, com normativas e ações que visam ampliar o acesso de pretos e pardos, indígenas, quilombolas e ciganos no Sus.

As perspectivas para o povo negro no país segundo os servidores

Para Sandrely, o Brasil vive um momento de reconstrução no enfrentamento ao racismo estrutural. “As perspectivas para os direitos civis afro-brasileiros são promissoras, embora ainda desafiadoras. O país tem avançado em políticas públicas, reconhecimento cultural e mobilização social, o que aponta para avanços importantes na promoção da igualdade racial. Mais do que políticas públicas, é essencial fortalecer a autoestima, a ancestralidade e a cultura negra como pilares da transformação social. Isso envolve promover uma educação antirracista, valorizar os saberes tradicionais e incentivar a presença de lideranças negras em todos os setores da sociedade”, comenta.

Wilke, que é um dos fundadores do Instituo Afrogen, que debate questões raciais e de gênero no município, lembra que, de acordo com o IBGE, Canaã dos Carajás é uma das cidades mais negras do Pará. “Por isso, eu convido todas as pretas e pretos para nos unirmos contra o racismo, em todas suas formas de manifestação. Venha conhecer o Instituto Afrogen, vamos dialogar e construir juntos uma sociedade com mais igualdade racial”, conclui. 

Alessandra: “Celebrar a Consciência Negra é reconhecer a realidade, valorizar a luta do povo preto e entender que a igualdade só será possível quando encararmos o passado com honestidade.”

Alessandra defende que o Brasil ainda precisa avançar muito no combate ao racismo e ao empoderamento do povo negro. “É um país profundamente racista e qualquer discussão sobre cotas revela o quanto ainda existe desconhecimento sobre o tema. A ignorância histórica é um grande obstáculo”, diz.

Entretanto, ela percebe avanços, inclusive em Canaã dos Carajás: “percebo um interesse real em discutir o assunto e isso é um sinal de mudança. As perspectivas dependem da continuidade das políticas públicas, da educação de qualidade, do acesso ao trabalho digno e, principalmente, da presença de pessoas negras na política, no Judiciário e em todos os espaços de liderança. Sem representatividade, não há transformação verdadeira”, afirma.

Ler artigo completo