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Na Amazônia, onde a floresta se estende por milhões de hectares, o dinheiro que move o mundo sustentável ainda passa longe. Enquanto cifras bilionárias em crédito verde se acumulam nas estatísticas, ribeirinhos, extrativistas e pequenos agricultores seguem à margem, tentando acessar recursos que poderiam transformar suas vidas.
O financiamento sustentável tem avançado no Brasil e movimenta cifras bilionárias.
De acordo com estudo inédito da ABDE (Associação Brasileira de Desenvolvimento), elaborado em parceria com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o volume de crédito verde cresceu quase 50% em três anos, alcançando R$ 603 bilhões em 2023.
O estudo mostra que, entre 2020 e 2023, o SNF (Sistema Nacional de Fomento) — rede de 35 instituições que inclui bancos públicos, regionais, agências de fomento e cooperativas de crédito — desembolsou cerca de R$ 2 trilhões em setores como infraestrutura, inovação, agropecuária e serviços.
A novidade é que há um alinhamento dessas operações com os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), da ONU.
“O Brasil tem uma série de investimentos e mecanismos em desenvolvimento e implantação para aumentar esse direcionamento de recursos para os ODS. A ideia é ampliar o impacto e atingir o máximo de setores possíveis, ao direcionar, por exemplo, para uma atividade agrícola ou industrial”, afirma Cristiano Prado, líder da unidade de Desenvolvimento Socioeconômico Inclusivo do PNUD no Brasil.
Para ele, os números indicam que o país pode se tornar referência internacional.
“Essa é uma tendência que vemos no mundo: há uma busca por normas e formas de financiamento, e no Brasil temos avançado com a construção de fundos voltados à preservação, reflorestamento, revitalização de áreas degradadas, apoio à bioeconomia e descarbonização dos setores produtivos”, frisou.
Na Amazônia Legal, o levantamento identificou 159 mecanismos de financiamento para a bioeconomia. A maior parte está concentrada em grandes áreas como infraestrutura e inovação tecnológica, enquanto apenas 13% têm como destino a sociobioeconomia — segmento que reúne ribeirinhos, extrativistas e pequenos produtores.
Para a ABDE, esse dado é emblemático. “Quando olhamos para a bioeconomia, percebemos três dimensões: a agro, ligada às commodities; a florestal, relacionada ao plantio de espécies nativas; e a sociobioeconomia, que valoriza os modos de vida da floresta. É justamente nesse último segmento que menos recursos chegam, e onde estão povos tradicionais e pequenos produtores”, explica André Godoy, diretor executivo da entidade.
Para ele, o financiamento sustentável precisa ser entendido como política de inclusão e entender a dinâmica local é fundamental.
“O crédito precisa ser pensado como inclusão produtiva. Não é só recurso financeiro, é transformação de vida nas comunidades”, afirma.
Crédito que chega na ponta
Apesar da baixa participação, há exemplos concretos de impacto positivo. Em Rondônia, a família Bento cultiva café robusta há três gerações.
O negócio começou pequeno, com lavouras mantidas por práticas tradicionais e colheita manual, mas só ganhou escala depois que Ronaldo da Silva Bento conseguiu acessar um financiamento de pouco mais de R$ 100 mil junto ao Banco da Amazônia por meio do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).
“A gente comprou os maquinários e começamos a nossa indústria, que hoje funciona na propriedade. E tem todas máquinas aqui, não é só a indústria, já tem mais coisas também dentro da propriedade”, afirma o produtor.
O recurso financiou equipamentos essenciais, como secadores e torradores, que transformaram a rotina da família.
O café deixou de ser vendido apenas em grãos in natura e passou a chegar torrado e embalado diretamente ao consumidor. A mudança ampliou a margem de lucro e permitiu à família ganhar prêmios, disputar espaço em feiras, supermercados e até em negociações para exportação.
Ronaldo resume em números o que isso significou: a produção familiar saltou de poucas sacas vendidas em feiras locais para centenas de quilos de café torrado por mês, em um faturamento de R$ 600 mil ao ano. Hoje, a propriedade recebe visitantes e possui uma cafeteria.
Para o futuro, Ronaldo quer aumentar a quantidade de placas solares para diminuir os custos, contratar mais gente e aumentar a produção de café.
Gargalos persistem
Apesar dos avanços e de histórias como a do Café Don Bento, a realidade da maioria das comunidades amazônicas ainda é marcada por barreiras para acessar o crédito.
Segundo os pesquisadores, os mecanismos financeiros existentes não chegam à ponta porque esbarram em exigências incompatíveis com a realidade local.
“As comunidades não conseguem atender às exigências que os bancos pedem. Os entraves burocráticos e fundiários ainda são enormes. É preciso simplificar e criar mecanismos ajustados à realidade amazônica”, afirma Geórgia Jordão, coordenadora de conhecimento da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia.
Ela lembra que, em muitos casos, produtores extrativistas vivem em áreas sem regularização fundiária, o que os impede de oferecer garantias formais.
“Estamos falando de famílias que preservam a floresta há gerações, mas que ficam de fora justamente porque não têm um papel assinado reconhecendo a posse da terra”, frisou.
Débora Marsulo, da Frankfurt School, reforça que a questão não é a ausência de crédito, mas a falta de conexão entre quem oferta e quem demanda.
“O problema não é a ausência de linhas, mas a falta de pontes. Sem título de terra ou documentação formal, as comunidades ficam excluídas. É por isso que precisamos de estruturas intermediárias, que aproximem técnicos e produtores e garantam que o dinheiro chegue à ponta”, disse.
Ela defende a criação de hubs financeiros locais, capazes de integrar bancos, agentes de crédito e associações comunitárias.
“Não basta anunciar grandes volumes de recursos em Brasília. É preciso ter equipes atuando diretamente nos territórios, conhecendo as cadeias produtivas e ajudando a estruturar os projetos”, explica.
Para Débora, iniciativas que combinam crédito com capacitação e assistência técnica são as que trazem resultados mais rápidos e duradouros.
“Não basta liberar recursos. É necessário acompanhar, apoiar o manejo do açaí, do cacau, da castanha. Esse é o caminho para transformar crédito em desenvolvimento sustentável.”
Geórgia destaca que o crédito precisa ser inclusivo e hoje quem protege a floresta é justamente quem menos consegue acessar os recursos.
“Essa lógica precisa ser invertida. As instituições financeiras ainda trabalham com uma visão urbana e formalizada. Mas a Amazônia tem outra dinâmica: produção em pequena escala, sazonalidade e forte presença comunitária”, pontuou Georgia.