'As músicas que escolhi para me preparar para morrer'

há 1 semana 5
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Os benefícios terapêuticos da música são cada vez mais reconhecidos nos cuidados paliativos no fim da vida

Os benefícios terapêuticos da música são cada vez mais reconhecidos nos cuidados paliativos no fim da vida

Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O DJ Dave Gilmore passou anos em Londres executando a trilha sonora das noites de outras pessoas em bares e casas noturnas.

Agora, ele está curando uma playlist totalmente pessoal: as canções que foram importantes para ele na vida e que irão levá-lo a atravessar sua doença terminal.

A lista inclui November Rain e Sweet Child O'Mine, do Guns N' Roses, Apache, dos The Shadows (que inspirou Gilmore a tocar violão) e Comfortably Numb, de Pink Floyd.

O sucesso de 1980 Will You?, de Hazel O'Connor, é dedicado à sua esposa e mãe dos seus dois filhos. Ode à poderosa tensão que antecede os romances, a canção é conhecida pelo solo de saxofone, um instrumento que Gilmore também aprendeu a tocar.

"É a nossa música, de quando ficamos juntos", conta ele ao programa de TV Morning Live, da BBC.

A música evoca recordações, enquanto sua esposa Kate acrescenta, baixinho: "A luta valeu a pena."

Dave Gilmore está curando uma playlist com músicas de toda a sua vida, para ajudá-lo a atravessar sua doença terminal

Dave Gilmore está curando uma playlist com músicas de toda a sua vida, para ajudá-lo a atravessar sua doença terminal

Foto: Kate Gilmore/BBC Morning Live / BBC News Brasil

Momentos como este enfatizam o poder da música para estabelecer conexões duradouras.

Seus benefícios terapêuticos são cada vez mais reconhecidos, na assistência paliativa e no final da vida.

Seu impacto é neurológico e também emocional, segundo a diretora-gerente da campanha Música para a Demência da ONG britânica Fundação Utley, Sarah Metcalfe.

Imagens da atividade cerebral mostram que a música "ilumina" diversas partes do nosso cérebro. Ela toca simultaneamente centros de sentido físico e emocional.

"Mesmo se uma parte do cérebro estiver lesionada, ainda é possível ter acesso às outras regiões", explica ela.

Dave Gilmore e Kate no seu casamento, em 1986

Dave Gilmore e Kate no seu casamento, em 1986

Foto: Kate Gilmore / BBC News Brasil

A organização beneficente britânica Marie Curie pesquisou 1 mil adultos com entes queridos que receberam assistência na fase final da vida.

Ela concluiu que ouvir música juntos ajudou a criar uma experiência compartilhada que os deixou mais próximos, gerando uma sensação de normalidade e ajudando para que eles pudessem relaxar.

Kate vivenciou esta experiência pessoalmente. Quando Gilmore voltou para casa, após um longo período internado no hospital, ele estava ansioso e exausto, mas não conseguia dormir.

Desesperada, ela apelou para a música nativa americana, um dos gêneros preferidos do marido, para relaxar. "E, de repente, este homem agitado e ansioso começou a dormir", relembra ela.

A enfermeira Diana Schad, da casa de repouso Marie Curie em Glasgow, na Escócia, tem 19 anos de experiência. E, como também é musicista, ela instalou um piano para uso por pacientes e voluntários.

Schad afirma que é importante considerar as sensações despertadas pela música.

"Você precisa sempre se perguntar: É isso que eles gostariam de sentir naquele momento?", explica ela.

Como fazer uma boa playlist para cuidados paliativos

  1. Concentre-se nas recordações musicais de 10 a 30 anos de idade, quando são formadas as associações mais fortes.
  2. Inclua canções relacionadas a lugares especiais, significativos e eventos importantes da vida, como a juventude, feriados, romances, primeiras danças e músicas de casamento.
  3. Considere os sentimentos despertados pelas músicas. Eles podem ser tão poderosos quanto as recordações associadas a elas.
  4. Lembre-se de que a música pode trazer recordações, mesmo para pessoas com condições como demência, conectando diversas regiões cerebrais.
  5. Fique atento a conexões musicais inesperadas, como temas de programas de TV ou jingles comerciais, que podem ter significados especiais.

Fonte: Diretora-gerente da campanha Música para a Demência, Sarah Metcalfe.

A enfermeira Diana Schad é musicista nas horas vagas. Para ela, a música desempenha papel fundamental na assistência paliativa no fim da vida

A enfermeira Diana Schad é musicista nas horas vagas. Para ela, a música desempenha papel fundamental na assistência paliativa no fim da vida

Foto: Marie Curie / BBC News Brasil

Especialistas concordam que a música pode reduzir a ansiedade e a dor psicológica, mesmo quando a pessoa está inconsciente.

A professora Sam Nurphy, da Universidade Aberta, no Reino Unido, é especializada em tanatologia, o estudo científico da morte e das práticas associadas.

"Certamente, existem evidências de que a audição é o último sentido a desaparecer", explica ela. "Por isso, mesmo quando alguém está inconsciente ou não reage, a música ainda pode chegar até eles."

"Ela mantém a pessoa conectada ao ambiente à sua volta, àqueles que ela ama, à sensação de estar vivo e às recordações que eles tiveram."

Conforto duradouro

A música também pode ser útil para os entes queridos, depois da morte de uma pessoa.

"Acho que é apenas mais uma distração para as pessoas enlutadas por um ente querido", afirma Murphy. "Mas existe o conforto de saber que eles estão ouvindo algo que o seu ente querido teria ouvido ao longo dos anos."

Foi o que ocorreu com Anna-Kay Brocklesby. Seu marido Ian morreu de câncer da próstata, em 2023.

À medida que a saúde de Ian se deteriorava, compartilhar suas canções favoritas passou a ser uma parte fundamental do mecanismo da família para lidar com a situação. Aquilo passou a ser uma forma de manter o ânimo e permanecer positivo, segundo Brocklesby.

"Toda manhã ele descia, fazia o chá e tocava Oh, What a Beautiful Morning ['Oh, que bela manhã', em tradução livre], do musical Oklahoma", relembra ela.

"E cantava alto. Ele usava a música como uma espécie de mentalidade, de que é assim que será o dia de hoje."

Eles tocavam canções de Frank Sinatra, Nat King Cole e Elton John, que ofereciam conforto e conexão.

Dois anos se passaram após a morte de Ian e Anna-Kay Brocklesby ainda encontra conforto nas músicas que eles ouviam juntos.

"Ele vive conosco de muitas, muitas formas", afirma ela, "mas a música pode nos levar para um lugar junto de Ian."

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