Após mais de 4 anos, qual o balanço da Lei do Superenvidamento? Estudo mostra

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Criada em 2021 sob o pretexto de proteger consumidores de dívidas impagáveis e viabilizar uma negociação mais frutífera entre credores e devedores, a Lei do Superendividamento (14.181/2021) tem um balanço “na média”, que reconhece a importância da legislação, mas também seus feitos limitados. É o que mostra um estudo da Predictus, empresa especializada em dados jurídicos.

A pesquisa, que analisou 85.484 processos judiciais em todo o Brasil, mostra que 46,8% dos casos resultaram no reconhecimento judicial do superendividamento, mas apenas 14,3% culminaram em planos de pagamento efetivamente homologados — ou seja, na prática, sete em cada dez decisões favoráveis não geram solução concreta para o consumidor.

“A maioria parece servir a outros propósitos, como suspensão temporária de cobranças, ganho de tempo para renegociação ou pressão sobre credores para acordos extrajudiciais”, explicou Hendrik Eichler, CEO e fundador da Predictus.

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O que estabeleceu a Lei do Superendividamento?

A Lei 14.181/2021, também conhecida como Lei do Superendividamento, sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro em 2021, representou um marco ao reconhecer que consumidores de boa-fé que não conseguem pagar todas as suas dívidas sem comprometer o chamado “mínimo existencial” têm o direito de negociar um plano único de quitação dos débitos — inclusive com a possibilidade de repactuação conjunta junto a todos os credores.

Para se enquadrar como superendividado, o indivíduo deve demonstrar que: não há intenção de fraude ou má-fé, que a dívida foi contraída em contexto de consumo (como compras a prazo ou crédito pessoal) e que, mesmo com todos os rendimentos, não seria possível manter as despesas básicas da vida digna. 

A lei prevê que, após o endividado apresentar um plano de pagamento detalhado contendo valores, prazos, eventuais descontos e suspensão de cobranças, seja convocada uma audiência de conciliação entre o devedor e seus credores. Se não houver acordo, um juiz poderá determinar um plano judicial compulsório, que assegure ao menos o pagamento do principal da dívida e estabeleça prazos de até cinco anos para quitação.

Desigualdade regional e uso estratégico da lei

Especialistas consultados pelo InfoMoney, contudo, acreditam que a Lei do Superendividamento precisa de ajustes para que sua aplicação resulte em renegociações, mas ponderam que o problema do superendividamento do país é estrutural e pede ações espefícias.

Um dos pontos de melhoria para o qual o estudo da Predictus chama atenção é a aplicação da Lei do Superendividamento é extremamente desigual entre os estados. O Rio Grande do Sul concentra 25,2% de todos os processos e tem 57,7% de decisões favoráveis, enquanto São Paulo, com população quatro vezes maior, responde por 14,4% dos casos e tem apenas 28% de reconhecimento.

O levantamento também aponta sinais de uso estratégico da legislação. Em ações que mencionam crédito consignado, a taxa de sucesso dobra (74,9%), e nas que citam o Decreto 11.150/2022, que regulamenta a Lei do Superendividamento e fixa em R$ 600 o valor do “mínimo existencial” (que será explicado a seguir), o índice quadruplica (76%).

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Para Eichler, a sensibilidade de alguns magistrados ao analisar casos de superendividamento acaba variando conforme a renda do devedor. “Os dados sugerem que, quando o juiz vê uma pessoa com renda baixa, totalmente comprometida, ele tende a enquadrá-la no superendividamento para garantir o mínimo existencial. Já para quem tem renda maior, é avaliada a boa fé e a capacidade de organização financeira, podendo negar ajuda se entender que a pessoa se comprometeu além do que poderia pagar”, explica.

O impasse do mínimo existencial

Para advogado Stefano Ferri, especialista em Direito do Consumidor, a legislação “trouxe instrumentos concretos para renegociação coletiva das dívidas e estimulou o diálogo entre credores e devedores, mas ainda há falta de uniformidade entre tribunais e ausência de estrutura adequada para conduzir as audiências de conciliação”.

E uma dessas falhas, segundo o especialista, é a definição do chamado “mínimo existencial” nos processos, valor que deve ser preservado da renda do endividado para garantir a subsistência do consumidor.

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O mínimo existencial foi definido em R$ 600, valor considerado irrisório e insuficiente para a subsistência do devedor por muitos juízes, que acabam adotando valores maiores como ” mínimo existencial” nos acordos. O problema é que isso é feito “caso a caso”, sem uniformidade.

“A falta de um critério claro gera insegurança tanto para credores quanto para devedores”, na visão de Eichler.

Endividamento e inadimplência em níveis recordes

De fato, o endividamento explodiu no país no decorrer dos primeiros anos de vigência da lei. O número de processos judiciais relacionados ao superendividamento cresceu 8.530% desde sua entrada em vigor. O total saltou de 409 ações em 2021 para 35.301 em 2024, num cenário que os pesquisadores classificam como uma “crise silenciosa” do endividamento no país.

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Dados gerais corroboram com a tese: conforme a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), divulgada pela CNC, a proporção de famílias com contas em atraso alcançou 30,5% em setembro de 2025, o maior patamar da série histórica desde 2010.

Segundo a CNC, quase 48,7% das famílias com contas em atraso em setembro permaneciam nessa condição por mais de 90 dias, evidenciando juros elevados e dificuldades no pagamento. E no recorte por renda, entre famílias com até três salários mínimos, o endividamento chegou a 82%, ainda que famílias com renda também tenham visto o crescimento do seu endividamento.

Enxugando gelo

Para Viviane Fernandes, pesquisadora de Infraestruturas Públicas Digitais no Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), a lei foi um marco, mas ainda não produziu resultados concretos proporcionais à sua importância, e o motivo para isso é, além da “aplicação ainda limitada e bastante desigual entre os estados”, a oferta irresponsável de crédito.

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“Continuamos a ver práticas de concessão de crédito irresponsáveis e o número de famílias superendividadas não para de crescer. Sem uma aplicação efetiva da lei, os consumidores permanecem sem saídas concretas para resolver seus problemas”, afirma.

Segundo o levantamento da Predictus, o setor financeiro aparece como o principal alvo das ações das Leis do Superendividamento, respondendo por 85% dos processos, incluindo bancos, financeiras e administradoras de cartão – setor para o qual Fernandes também chama a atenção

“Observa-se o desenvolvimento de produtos de crédito pouco transparentes e de difícil compreensão. É preciso coibir as ofertas irresponsáveis e ampliar a supervisão do Banco Central”, defende.

Procon-SP

Em nota enviada ao InfoMoney, o Procon-SP afirmou que, apesar de haver espaço para aprimoramentos, a Lei 14.181/2021 é uma ferramenta essencial na proteção dos consumidores superendividados.

O órgão lembra que, antes mesmo da norma, já mantinha o Núcleo de Tratamento do Superendividamento (NTS) e o Programa de Apoio ao Superendividado (PAS), que orientam famílias sobre orçamento doméstico, educação financeira e renegociação de dívidas.

“O Procon-SP auxilia na renegociação dos débitos com condições compatíveis ao orçamento familiar, garantindo o mínimo existencial — despesas básicas como água, luz, alimentação e transporte”, diz o órgão, e complementa: “A ideia é reinserir o consumidor no mercado de consumo, recuperando sua dignidade e também beneficiando as empresas, que voltam a ter compradores ativos”.

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