A história completa: como a Kodak inventou a câmera digital e depois destruiu o próprio futuro

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Recentemente, exploramos neste artigo como a Kodak, em meio à maior crise financeira de sua história de 133 anos, ainda encontra forças para sobreviver graças a uma improvável aliança com a Geração Z e a nostalgia cinematográfica. Jovens ávidos por experiências não vividas abraçaram câmeras analógicas e filmes vintage, mantendo de pé uma empresa que hoje luta contra dívidas de 500 milhões de dólares e admite ter “dúvidas substanciais” sobre sua própria sobrevivência.

Mas essa ironia do destino esconde uma tragédia empresarial ainda mais profunda. A mesma empresa que hoje depende da nostalgia de uma geração digital para se manter viva foi, paradoxalmente, a criadora da tecnologia que destruiu seu próprio império.

Eureca!

como a Kodak inventou a câmera digital e depois destruiu o próprio futuroSteven Sasson

Em dezembro de 1975, nos laboratórios da Eastman Kodak em Rochester, Nova York, um jovem engenheiro de 24 anos estava prestes a mudar para sempre o mundo da fotografia. Steven Sasson havia acabado de construir uma engenhoca do tamanho de uma torradeira que pesava quase quatro quilos. Era tosca, desajeitada e levava 23 segundos para capturar uma única imagem em preto e branco de míseros 0,01 megapixels.

Era a primeira câmera digital autônoma da história.

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Joy Marshall, técnica de laboratório que posou para a primeira foto digital do mundo, olhou para sua imagem pixelizada numa tela de televisão e fez uma observação profética: “Precisa melhorar”. Ela não imaginava que estava testemunhando o nascimento da tecnologia que, décadas depois, destruiria o império fotográfico mais poderoso do século XX.

A tragédia da Kodak não foi ter perdido a revolução digital. Foi tê-la inventado e depois enterrado seu próprio futuro. Esta é a história de como uma das maiores ironias tecnológicas da história se desenrolou, levando uma gigante centenária a depender hoje da nostalgia para sobreviver em meio à pior crise de sua existência.

O gigante que ensinou o mundo a fotografar

Para compreender a magnitude do erro estratégico da Kodak, é preciso voltar às suas origens triunfantes. Fundada em 1888 por George Eastman, a empresa democratizou a fotografia com um slogan revolucionário: “Você aperta o botão, nós fazemos o resto”. Pela primeira vez na história, qualquer pessoa podia capturar memórias sem precisar ser um especialista em química ou processos complexos de revelação.

Por que nao e so apertar o botao

Durante quase um século, a Kodak não apenas dominou o mercado fotográfico — ela praticamente o criou. No auge de seu poder, nos anos 1970, controlava impressionantes 90% do mercado americano de filmes e 85% das vendas de câmeras. Seu modelo de negócio perfeito: vendia câmeras baratas para lucrar massivamente com filmes, produtos químicos e papel fotográfico.

Era o que os executivos internamente chamavam de estratégia “haleto de prata”, em referência aos compostos químicos do filme. Funcionava como uma máquina de imprimir dinheiro. Em 2000, as vendas relacionadas ao filme representavam 72% da receita da empresa e 66% de sua receita operacional. Para cada dólar gasto em filme, a Kodak embolsava até 70 centavos de lucro líquido.

A invenção que mudaria tudo

Em 1973, Sasson se formou em engenharia elétrica pelo Instituto Politécnico Rensselaer e foi contratado pela Kodak, uma escolha aparentemente estranha, já que a empresa tradicionalmente empregava engenheiros químicos e mecânicos. Mas os tempos estavam mudando. Os controles eletrônicos começavam a dominar as câmeras, desde avanços de filme até sistemas de flash.

Dois anos depois, Sasson recebeu uma tarefa aparentemente simples: investigar o desempenho de imageamento de um dispositivo de carga acoplada (CCD) desenvolvido pela Fairchild Semiconductor. O jovem engenheiro, no entanto, tinha uma visão mais ambiciosa. Inspirado por suas experiências de infância desmontando eletrônicos, ele imaginou como pulsos elétricos poderiam ser exibidos como padrões bidimensionais, similar ao funcionamento das televisões.

Durante dois anos, Sasson trabalhou obsessivamente no projeto. Ele “roubou” uma lente de uma câmera de filme Super 8 usada, conectou circuitos digitais e analógicos em seis placas diferentes, e alimentou tudo com 16 baterias AA. O resultado final tinha o tamanho e peso de uma torradeira, mas conseguia fazer algo revolucionário: capturar luz e convertê-la em dados digitais, armazenados em fita cassete.

O impacto potencial era óbvio. Como Sasson explicaria anos depois no processo de patente, a tecnologia oferecia uma vantagem inédita: “O operador da câmera pode primeiro visualizar cada cena gravada e depois decidir se quer manter a imagem. Cenas indesejadas podem ser apagadas da fita, que pode ser reutilizada sem custos adicionais”.

Era o fim teórico da dependência do filme físico.

A reação que selou o destino

Quando Sasson demonstrou sua invenção para os executivos da Kodak, a reação foi um misto de curiosidade e ceticismo. “Não houve uma sensação real de que tínhamos inventado algo”, lembraria Sasson décadas depois. “A sensação era de que isso representava uma visão muito assustadora do que poderia ser possível no futuro.

Os executivos estavam “convencidos de que ninguém jamais quereria olhar suas fotos em um aparelho de televisão”. Mais importante ainda, eles compreendiam perfeitamente a ameaça existencial que a tecnologia representava. Como o modelo de negócio da empresa era inteiramente focado em produtos sensibilizados (filme), propor que eles não utilizassem nada disso “não era popular”, nas palavras de Sasson.

A resposta da alta administração foi brutal em sua simplicidade: mantiveram o projeto em segredo e efetivamente o engavetaram. Em 1977, a Kodak registrou uma patente para algumas características da câmera de Sasson, mas não fez nenhum esforço para comercializá-la. A empresa tinha literalmente inventado o futuro da fotografia e escolheu ignorá-lo.

O profeta ignorado

A Kodak não estava cega ao que se aproximava. Em 1979, Larry Matteson, então executivo da empresa trabalhando com desenvolvimento avançado de câmeras de consumo, produziu um relatório devastadoramente preciso. Ele previu que a tecnologia digital substituiria completamente o filme até 2010, começando pelas aplicações governamentais e militares e culminando com os consumidores.

A previsão era detalhada e assombrosamente precisa. Matteson antecipou exatamente como diferentes segmentos de mercado migrariam do filme para o digital, incluindo o mercado de massa até 2010. A liderança da empresa reconheceu amplamente a transformação iminente e seu impacto desde o início dos anos 1980. Mas reconhecer e agir são coisas completamente diferentes.

Incapaz de entender sua própria imagem

Durante as décadas de 1980 e 1990, a Kodak adotou uma abordagem esquizofrênica em relação ao digital. Publicamente, investiu bilhões em pesquisa e desenvolvimento. O CEO George Fisher (1993-1999) direcionou mais de 2 bilhões de dólares em P&D para imageamento digital. Dois terços do orçamento de pesquisa da empresa foram canalizados para projetos digitais.

A empresa até mesmo construiu um portfólio impressionante de patentes digitais. Entre 2008 e 2010, a Kodak faturou quase 2 bilhões de dólares apenas com licenciamento e litígios sobre sua propriedade intelectual digital — prova clara dos recursos que havia desenvolvido na arena digital.

Mas internamente, a resistência era feroz. A cultura corporativa da Kodak estava profundamente enraizada na química do filme. Como observou o CEO da Fujifilm, Shigetaka Komori, sobre seu rival americano: “Era a empresa número um por tanto tempo que isso, acredito, a tornou lenta para se adaptar. De fora, parecia que a Kodak no fundo realmente não queria”

A empresa sofria do que alguns especialistas chamaram de “miopia de marketing” — ela se via como uma empresa de filme, não como uma empresa de contar histórias. Quando deveria ter abraçado a disrupção, escolheu proteger seu legado.

O paradoxo do sucesso digital

O mais irônico é que a Kodak chegou a ter sucesso inicial no mercado de câmeras digitais. Em 2005, capturou impressionantes 21,3% do mercado americano e emergiu como líder no segmento digital, superando rivais japoneses. Naquele ano, conseguiu aumentar suas vendas em 15%.

Mas havia um problema fatal: a empresa não conseguia lucrar com câmeras digitais. Segundo um estudo de caso de Harvard, em 2001 a Kodak perdia 60 dólares para cada câmera digital vendida. Enquanto o filme gerava margens de até 70 centavos por dólar, o imageamento digital mal conseguia gerar 5 centavos.

A situação ficou ainda mais dramática quando se analisa os números financeiros. Em 2006, quando a empresa separou oficialmente os números de vendas dos segmentos digital e filme, a realidade se tornou cristalina: a Kodak conseguiu substituir as vendas declinantes de filme por receita de imageamento digital, mas essa atividade gerava perdas maciças.

Em 2011, o último ano antes da falência, as vendas de filme geraram apenas 34 milhões de dólares em receita operacional, enquanto a divisão de câmeras digitais perdeu dez vezes esse valor — 349 milhões de dólares em prejuízos.

A tempestade perfeita da disrupção

A partir de 2007, uma tempestade perfeita se formou contra a Kodak. Os smartphones começaram a incorporar câmeras cada vez mais sofisticadas. O iPhone original, lançado naquele ano, não tinha uma câmera particularmente impressionante, mas sinalizava uma mudança fundamental: as pessoas queriam dispositivos convergentes, não gadgets separados.

iPhone 2007Primeira geração do iPhone, 2007

Simultaneamente, as redes sociais transformaram completamente o comportamento fotográfico. O Facebook foi lançado ao público em 2006, o Instagram nasceu em 2010. De repente, as pessoas não queriam mais imprimir fotos — elas queriam compartilhá-las instantaneamente online.

A Kodak havia construído toda sua estratégia digital em torno da impressão. Em 2001, adquiriu o site de compartilhamento de fotos Ofoto, mas o utilizou principalmente para fazer as pessoas imprimirem fotos digitais, não para entender que o compartilhamento online era o novo negócio

Era uma diferença conceitual fatal. A empresa previu corretamente que as fotos seriam compartilhadas online, mas interpretou isso apenas como uma extensão das vendas de impressão, não como uma substituição fundamental.

A queda livre

Os números finais da Kodak contam uma história de declínio acelerado e irreversível. A empresa que faturou 19 bilhões de dólares no ano 2000 viu suas receitas despencarem para menos de 6 bilhões em 2011. No mesmo período, suas ações desabaram de mais de 70 dólares para menos de 1 dólar.

Em janeiro de 2012, após décadas de agonia financeira, a Kodak entrou com um pedido de concordata. A empresa que havia ensinado o mundo a fotografar, que inventara a câmera digital e possuía uma das mais valiosas coleções de patentes tecnológicas do mundo, estava quebrada.

Durante o processo de falência, a empresa foi forçada a sair completamente do mercado de câmeras digitais, encerrando também a produção de câmeras de vídeo e porta-retratos digitais. Era o fim simbólico de uma era.

A tragédia da história da Kodak fica ainda mais evidente quando comparada com a trajetória da Fujifilm, que enfrentou exatamente a mesma crise existencial. Em 2000, 60% das vendas da Fuji vinham do ecossistema do filme. Em 2010, após uma transformação radical liderada pelo CEO Shigetaka Komori, a divisão de imaging representava menos de 16% da receita.

A diferença crucial foi que a Fujifilm escolheu se diversificar completamente. Utilizou suas competências em química e nanotecnologia para entrar em mercados completamente novos: cosméticos (baseados em seu conhecimento de colágeno do filme), telas LCD (utilizando tecnologias de revestimento de filme), e até mesmo produtos farmacêuticos (segmento que a Kodak também passou a investir).

A Kodak, por outro lado, dobrou a aposta no mercado fotográfico. Em 2007, quando a Fujifilm estava se diversificando agressivamente, a Kodak vendeu sua altamente lucrativa divisão de imagem médica por 2,35 bilhões de dólares para colocar mais recursos em sua divisão de câmeras de consumo perdedora. Para Komori, da Fujifilm, foi um “erro fatal”.

O ressurgimento improvável

Ironicamente, em 2025, décadas após sua queda, o nome Kodak está vivendo um ressurgimento inesperado no mercado japonês de câmeras compactas. Câmeras de marca Kodak, agora produzidas sob licença por outras empresas — estão liderando as vendas no Japão, capturando 22,5% do mercado total em alguns meses. No Brasil, a Kodak opera sob o mesmo modelo. Por aqui, a startup SegPack adquiriu os direitos de usar o nome Kodak para uma linha de câmeras instantâneas e filmes fotográficos fabricados e distribuídos localmente.

Modelos como o Kodak PixPro FZ55, com tecnologia de uma década atrás e preços abaixo de 200 dólares, estão superando marcas como Canon, Sony e Fujifilm. É um fenômeno impulsionado por uma nova geração de fotógrafos jovens que buscam alternativas acessíveis às câmeras vintage desejáveis, mas inacessíveis.

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É uma ironia final: a marca Kodak está prosperando precisamente porque oferece tecnologia simples e acessível — os mesmos princípios que fizeram dela um gigante há mais de um século. Mas agora é apenas uma licença, não mais a empresa que revolucionou a fotografia.

Kodak

A história da Kodak não é simplesmente sobre uma empresa que perdeu uma revolução tecnológica. É sobre uma empresa que criou essa revolução e depois escolheu rejeitá-la. É sobre como o sucesso passado pode se tornar a maior barreira para o sucesso futuro.

Vince Barabba, ex-executivo da Kodak, resumiu perfeitamente o dilema em seu livro sobre tomada de decisão organizacional. Em 1981, quando era chefe de inteligência de mercado da empresa, ele conduziu um estudo que produziu notícias “ruins” e “boas”. As notícias “ruins” eram que a fotografia digital tinha potencial para substituir o negócio de filme estabelecido da Kodak. As “boas” eram que isso levaria tempo para acontecer, e a empresa tinha aproximadamente dez anos para se preparar para a transição.

A Kodak teve uma década de vantagem competitiva. Tinha a tecnologia, os recursos, o conhecimento do mercado e até mesmo previsões precisas sobre quando a mudança aconteceria. Mas a inércia organizacional e o medo da canibalização impediram qualquer ação decisiva.

Como observou Dan Alef, autor de uma biografia de George Eastman, fundador da Kodak: “Na lei, chamamos isso de pássaro que gosta de voar para trás. Porque é mais confortável olhar para onde esteve do que para onde está indo”.

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